De Reykjavík, na Islândia
D esde 2009, a Islândia ocupa o primeiro lugar no ranking de igualdade de gênero do Fórum Econômico Mundial. Anualmente, a organização classifica 142 países de acordo com a participação das mulheres no mercado de trabalho e na política, suas oportunidades econômicas, acesso à educação, saúde e sobrevivência. Cada país recebe, então, uma nota de 0 a 1: quanto mais próximo de 1, mais justo o país. A nota atual da Islândia é 0.859. O Brasil está em 71º lugar, com uma nota de 0.694.
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O que faz da Islândia um lugar tão bacana para as mulheres? Separamos cinco destaques, alguns dos quais podem nos inspirar a lutar por uma posição melhor para o Brasil no ranking – e outros que devem te instigar a conhecer esse país em que é mais gostoso ser mulher.
As mulheres islandesas não têm medo de protestar e por isso o país é pioneiro na conquista de direitos civis básicos
No século 19, surgiram diversas associações de mulheres na capital islandesa, Reykjavík. De início, eram apenas uma forma das mulheres se ajudarem com tarefas domésticas e ofícios em comum. Aos poucos, esses grupos foram se tornando feministas e, graças à pressão deles, a Islândia passou a estabelecer garantias legais até então inéditas às mulheres. A ilha, por exemplo, foi o primeiro país a conceder direitos de herança iguais a homens e mulheres, em 1850. Em 1882, as islandesas conquistaram o direito ao voto em eleições locais e, em 1915, nas nacionais – 15 anos antes das ativistas chamadas suffragettes conseguirem o mesmo nos Estados Unidos.
Mas o maior símbolo da luta feminista no país é a greve feminina de 24 de Outubro de 1975. Milhares de islandesas foram às ruas para protestar contra o baixo reconhecimento dado ao trabalho feminino. Tanto donas de casa quanto mulheres que trabalhavam fora participaram da manifestação. Como resultado, lojas, escolas e fábricas fecharam, causando enormes prejuízos. Muitos homens tiveram de levar os filhos pequenos ao trabalho. Assim, elas chamaram atenção para a importância da mulher na sociedade e ganharam poder de barganha para exigir melhoras nas leis trabalhistas e políticas públicas.
A Islândia foi o primeiro país do mundo a ter uma mulher na presidência e também o primeiro a eleger uma chefe de estado abertamente homossexual
Vigdís Finnbogadóttir, a primeira mulher a se tornar presidente no mundo, deteve o cargo entre 1980 e 1996, período que abarca três reeleições. Antes da presidência, ela era diretora da Companhia de Teatro de Reykjavík. Cabe ressaltar, no entanto, que a presidência é um cargo simbólico na Islândia: o comando do Estado é de responsabilidade d@ primeir@-ministr@, sendo @ presidente uma espécie de relações públicas do país no exterior. Depois da presidência, Finnbogadóttir fundou o Conselho de Mulheres Líderes Mundiais, parte do departamento de ciências políticas da Universidade Harvard.
Em 2009, no auge da crise econômica que levou o país à falência, os islandeses colocaram uma mulher no cargo de primeir@-ministr@. A eleita foi Johanna Sigurðardottir, a primeira chefe de estado assumidamente lésbica do mundo – e, até hoje, a única. Ela foi comissária de bordo da Icelandic Airlines até 1971, sendo muito ativa no sindicato da categoria. A atuação no campo dos direitos trabalhistas acabou levando-a à política.
A Islândia foi um dos primeiros países a dar direitos iguais aos casais homossexuais
Casais homossexuais islandeses têm os mesmos direitos que os heterossexuais desde 1996, quando lhes foi permitido fazer contratos de união civil que davam as mesmas garantias de um casamento. Porém, até 2010, a palavra “casamento” continuou sendo usada na lei apenas para os heterossexuais. Assim que a mudança foi aprovada, no dia 27 de julho, a primeira-ministra pediu para converter sua união civil com Jónína Leósdóttir em um casamento.
Na Islândia, a licença paternidade pode durar o mesmo tempo que a licença maternidade
Enquanto outros países europeus têm licenças que podem ser divididas entre a mãe e o pai (o que, na maior parte dos casos, acaba fazendo com que o homem transfira a sua licença toda ou quase toda à mulher), em 2000 a Islândia botou a mão na massa para garantir igual envolvimento dos pais no cuidado dos bebês e fazer com que as empresas não enxerguem as mulheres como “fator de risco”. Desde então, ambos os pais têm direito a três meses de licença remunerada e não-transferível e mais três meses de licença não-remunerada que podem ser divididos da maneira que o casal achar melhor. No total, a criança pode ficar até nove meses sem precisar ir para a creche.
O efeito da lei foi positivo: estudo publicado no Nordic Labour Journal em 2014 aponta que 90% dos pais islandeses tiram a licença, ficando uma média de 101 dias fora do trabalho. Esta média indica, no entanto, que os homens não estão tirando a licença extra não-remunerada. Quando aproveitada, ela é tirada pela mulher. Isso acontece devido à diferença de salários entre homens e mulheres. A família não pode abrir mão da renda do pai – situação que se agravou com a crise econômica.
Na Islândia, colocar seu filho na creche não custa caro
Uma das maiores conquistas da grande greve de 1975 foi o aumento no número de creches financiadas pelo Estado. Cabe ao município arcar com 95% dos custos das creches. Os pais ficam com o resto. Como resultado, 90% das crianças de até 5 anos estão matriculadas, o que dá às mulheres maiores oportunidades de competir como mão de obra atraente. A Islândia é líder mundial em participação feminina no mercado de trabalho: 82,6% das mulheres em idade economicamente ativa trabalham. De modo geral, as pessoas não acham que mulheres com filhos serão piores profissionais. Um bom exemplo é Thóra Arnórsdottir, jornalista que, em 2012, obteve o segundo lugar na disputa pela presidência. Ela estava grávida e deu à luz apenas algumas semanas antes da eleição, além de já ter dois outros filhos de um homem com quem não é casada. Nada disso importou para o eleitorado.
Mas nem tudo são flores…
Apesar das estatísticas de dar inveja às mulheres de outros países, é claro que a Islândia não é o paraíso. Ainda falta muito para que exista total igualdade de gênero no país: as mulheres ainda ganham cerca de 10% menos do que os homens pelo mesmo serviço (apesar disso ser uma das exigências da greve de 1975). Uma pesquisa feita recentemente apontou que 24% das islandesas já sofreram algum tipo de violência sexual. Este ano, no aniversário de 100 anos do sufrágio feminino, as islandesas fizeram a maior marcha das vadias desde que o evento começou, chamando atenção para a cultura do estupro. Na web, o destaque ficou por conta da campanha #freethenipple (“mamilo livre”), iniciada no Instagram por uma moça de apenas 17 anos – vale lembrar que o Brasil ganhou sua própria campanha #mamilolivre neste mês, leia mais aqui.
Então, sim, ainda existem feministas na Islândia e elas andam muito bem ocupadas, obrigada. AzMina bateu um papo com Kristín Vilhjálmsdóttir, Herdís Schopka e Ása Gestsdóttir, integrantes do Knúz, um grupo de Reykjavic que se dedica a debater as questões de gênero no país. A troca de ideias do coletivo acontece em três plataformas: um grupo fechado no Facebook, um site com textos de membros e convidad@s e reuniões periódicas regadas a cerveja Viking. Da conversa, veio uma surpresa: a Islândia e o Brasil têm mais em comum do que você imagina.
MÍDIA
“As revistas femininas islandesas são muito focadas em ditar como deve ser a aparência das mulheres e como elas devem se comportar”, Kristín
“Há muitas propagandas que colocam o homem como um ser inútil nas tarefas domésticas, como se não conseguissem fazer nada sem as mulheres”, Hérdis
“Aqui também as roupas e brinquedos infantis são separados entre azul e rosa. Ainda existe a cultura de que meninos não podem brincar com bonecas e meninas não podem brincar com carrinhos”, Ása
MERCADO DE TRABALHO
“A Islândia é líder na porcentagem de mulheres ativas no mercado de trabalho, mas ainda há um telhado de vidro. São poucas as que chegam à liderança das empresas. As mulheres não comandam o dinheiro na Islândia. Assim como no resto do mundo, as áreas em que se concentram mulheres pagam menos. Por exemplo: os homens viram médicos, as mulheres enfermeiras”, Kristín
DIREITOS REPRODUTIVOS
“Mesmo aqui o direito ao aborto é muito frágil. Não basta você dizer que quer fazer, é preciso obter a assinatura de dois médicos e uma assistente social. Você tem que se ‘candidatar’ ao aborto, preencher uma ficha de inscrição. Essas candidaturas não são recusadas em grandes números, mas a possibilidade existe”, Hérdis
“Eu mesma conheço uma mulher que engravidou por acidente e não estava preparada para ser mãe, simplesmente não queria. E escreveu isso na sua ficha de inscrição. A assistente social disse a ela: ‘por favor, coloque outro motivo. Diga que é por causa da sua condição econômica ou social’. Não querer não é considerado um motivo legítimo”, Kristín
MATERNIDADE
“Na Islândia não há estigma algum em ser mãe solteira. Mas há um estigma em não ter filhos. Então, se você não se casa, ainda assim as pessoas te cobram: ‘quando você vai engravidar?’. A ideia é que você não precisa de um marido para ser mãe. Mas TEM QUE ser mãe”, Hérdis
“As pessoas cuidam muito da sua vida aqui na Islândia. Elas se sentem no direito de perguntar. Eu tive gêmeos aos 27 anos. Aí achei que estava livre, que ninguém mais me encheria. Mas não adiantou.Tenho uma tia que toda vez que me via, perguntava: ‘e aí, quando vem o próximo?’, Kristín
JORNADA MÚLTIPLA
“Os homens desta geração têm participado mais dos trabalhos domésticos. Isso é uma consequência da nova licença paternidade, o que demonstra que a lei pode dar um empurrãozinho na cultura. Mas é aquela coisa: quando um homem faz o serviço, recebe elogios. Já a mulher não faz mais que a obrigação. Outro porém é que, ultimamente, com a crise econômica, os homens têm tirado menos tempo de licença paternidade, afinal eles ganham mais que as mulheres”, Ása
PORNÔ E SEXO
“Tenho percebido, em meus encontros com homens, que o sexo hoje está diferente de anos atrás. Mesmo com homens mais velhos, eles mudaram. Às vezes me pergunto: ‘estou fazendo sexo com alguém ou isso aqui é uma performance?’”, Hérdis
“Também percebi isso. Há uma outra estética. É óbvio que eles foram influenciados. Não parece vir de dentro, é como se tivesse alguém mais no quarto assistindo. Outro dia li uma estatística sobre estupros na Islândia e o quanto isso está relacionado com a estética pornô. Há um aumento nos casos de estupro coletivo, estupro anal, oral e uso de objetos. Também há mais estupradores que filmam o ato. Ou seja: justamente as práticas comuns nos vídeos pornô mainstream”, Ása