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Nove meses de Zika: e agora?

Foi uma gestação inteira desde que primeiro ouvimos falar de Zika vírus e microcefalia. AzMina aproveita a data para reanimar as discussões com uma série sobre o que mudou na vida dessas mães após o nascimento de seus bebês

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“Podemos desmarcar a entrevista hoje? Tive que levar meu filho para o médico e só tinha profissional adequado na cidade vizinha, a uma hora de viagem de onde moramos”. Essa foi a frase mais ouvida pela reportagem da Revista AzMina nos dois meses que durou a apuração desta série de reportagens. “Hoje não dá para conversarmos. Estou na emergência com o bebê e está lotado” e “Podemos falar amanhã? Hoje tenho que passar o dia com ele na fisioterapia” eram também falas comuns.

Uma gestação se passou desde a primeira notificação de recém-nascido com microcefalia em decorrência do Zika vírus no Brasil e pouco ou nada foi feito pelo governo. O fato é que a microcefalia não tem cura, o acompanhamento de saúde e o estímulo ao desenvolvimento dessas crianças devem ser constantes – e os cuidados da família ou do responsável, em geral uma mulher, duram para a vida toda.

O apoio social significa muito para pessoas como Thayane Alves da Silva. Moradora de Manaus e grávida de oito meses, ela já é mãe de uma criança com microcefalia, nascida sete anos atrás, em uma época em que nada e ninguém falava na anomalia. “A minha gravidez foi considerada normal. Fui descobrir que minha filha tinha microcefalia somente no parto, quando o médico viu a cabecinha dela”, conta a moça, que engravidou na adolescência e considera que, além da falta de informação, sofreu com preconceito por ser mãe tão jovem.

“Por anos eu achei que só existia minha filha com microcefalia no mundo todo”.

Ou para Josiane Santana, de Salvador, mãe de gêmeos bivitelinos de oito meses, um deles com microcefalia; ou ainda Aline Barbosa Oliveira, que morava no Espírito Santo quando engravidou e teve seu bebê, mas que decidiu se mudar para São Paulo, há dois meses, para conseguir médicos e fisioterapeutas gratuitos para seu filho; ou Natália Campos de Assis, da região de Campinas, mãe de uma bebê de nove meses, que conta não ter tido nenhum sintoma de Zika vírus e não sabe o que causou a anomalia em sua filha. Natália entra nos mais de 3 mil casos suspeitos de microcefalia que ainda estão sendo investigados.

Thayane, a adolescente que achava ter dado à luz à primeira criança com microcefalia do mundo, assim como as recentes mães de bebês microcéfalos entrevistadas para esta série, compartilham suas histórias para nos fazer pensar: “e se fosse eu?”. E se eu tivesse que esperar eternamente por exames que confirmassem o que causou a microcefalia em meu bebê? Se eu vivesse a incerteza de não saber se conseguirei a ajuda necessária do governo e apoio psicológico e material quando eu tivesse que largar o trabalho, os estudos e até me mudar de estado para cuidar integralmente de meu bebê?

Sem opção

Foram registrados 5.909 casos de suspeita de microcefalia em todo o Brasil de novembro de 2015, data da primeira notificação de microcefalia decorrente de Zika vírus, a fevereiro de 2016. Destes, foram confirmados, até 25 de junho, 1.638 casos de bebês com microcefalia e outras alterações do sistema nervoso. Os dados são do Ministério da Saúde. Também foram registradas 328 mortes suspeitas de microcefalia e/ou alteração do sistema nervoso central após o parto ou durante a gestação. O Nordeste, principalmente Pernambuco, foi a região com maior número de casos.

No começo deste ano, época em que o Brasil e demais países da América do Sul passavam por um surto de Zika vírus, ativistas e acadêmicos brasileiros pediram ao Supremo Tribunal Federal um pacote de medidas de saúde pública que considerassem tanto a flexibilização do aborto como uma série de políticas públicas para atender esta geração de crianças – que estavam e estão nascendo – com necessidades muito especiais.

Em fevereiro deste ano, a Organização das Nações Unidas (ONU) pediu que os países que viviam o surto de Zika vírus permitissem o acesso de mulheres à contracepção e ao aborto. O apelo foi dirigido especificamente aos países sul-americanos por estarem passando pelo surto e por não terem, na maioria dos países, leis flexíveis em relação ao aborto.

No Brasil, até o momento, o Ministério da Saúde não apresentou nenhuma novidade para as famílias com filhos com microcefalia. Não discutiu nem a possibilidade de interrupção da gravidez e nem de tratamento para quem decidisse – ou fosse obrigado a decidir – que eles nascessem. E as mães, que têm passado por abalos psicológicos, emocionais e financeiros, ficaram também sem assistência. A única medida do governo brasileiro foi um “aconselhamento”, pedindo que as brasileiras evitassem engravidar neste período.

“Claramente, a propagação do Zika é um grande desafio para os países da América Latina”, afirmou o Alto Comissário para os Direitos Humanos da ONU, Zeid Ra’ad al-Hussein, em um comunicado. “No entanto, o conselho dado por alguns governos às mulheres para que evitem engravidar ignora que muitas delas não têm qualquer controle sobre o momento ou as circunstâncias nas quais podem ficar grávidas, especialmente onde a violência sexual é bastante habitual.”

VÍDEO PRONUNCIAMENTO de Dilma Rousseff, em fevereiro de 2016, explicando o que era o surto do Zika vírus no Brasil e qual o seu surgimento no mundo. No vídeo, a presidenta pede ajuda da população para combater o Aedes, mosquito transmissor do vírus 

Depois do parto

AzMina procurou mães de diferentes partes do Brasil que tiveram seus filhos com microcefalia para contar como suas rotinas se modificaram, como tem sido os desafios de ter um filho com a anomalia e como o Estado tem cuidado desses bebês e dessas mães. A série de reportagens “Nove meses de Zika: e agora?” será publicada no decorrer desta semana.

Ela conta, em detalhes, as histórias de Thayane, Josiane, Aline, e Natália. A última reportagem mostra como uma rede de apoio e solidariedade feminina tem se formado em torno dessas famílias, com campanhas de doações e com atendimentos psicológicos gratuitos a essas mães, que tiveram suas rotas de vida alteradas pelo surto de Zika vírus. São mulheres de diversas profissões, mães ou não, que estão se organizando, na internet e fora dela, para fazer o trabalho que o governo deveria estar fazendo.

Mais uma vez, nos salva a irmandade feminina.

Alta do Zika passou, mas ainda é perigoso engravidar

Para a médica Érika Fontana Sampaio, infectologista do Instituto de Infectologia Emilio Ribas e do Centro de Referência DST da Penha, de São Paulo, o surto do Zika vírus revelou uma crise sanitária nas grandes cidades do Brasil. Nesta entrevista, ela esclarece questões relacionadas ao Zika vírus, ao sistema de saúde do país, à gestação e à mulher.

AzMina: Por que existe maior incidência do Zika vírus na América do Sul?

A América do Sul reúne condições de temperatura e umidade que favorecem a proliferação do mosquito vetor, no nosso caso, o mosquito Aedes Aegypti. Não por acaso, o surto de Zika vírus veio acompanhado de dengue, chicungunha e outras doenças virais também transmitidas pelo Aedes. Outro fator que pode colaborar para o surto dessas doenças virais na América do Sul são as condições socioeconômicas de algumas regiões e as políticas públicas ineficientes de controle dos criadouros dentro da área urbana.

Nas grandes cidades brasileiras, problemas de limpeza no lixo das ruas, em terrenos baldios e nos quintais das casas, assim como a falta de saneamento básico, são as principais causas da proliferação do mosquito.

No Brasil esse quadro piora porque o grande desmatamento pelo qual o país passa fez com que o mosquito se adaptasse nas zonas urbanas e em grandes centros populacionais.

Com isso, crescem as chances de cada mosquito picar mais pessoas, aumentando também as chances de transmissão do Zika vírus.

AzMina: O Zika vírus pode ser transmitido por relação sexual?

Já está confirmada a transmissão do Zika vírus por meio da relação sexual, mas, aparentemente, são casos raros e isolados e ainda não se sabe como esse tipo de transmissão pode influenciar no surto de Zika. A OMS [Organização Mundial da Saúde] tem recomendado que gestantes que morem em regiões de surto do vírus ou gestantes cujo parceiros viajaram recentemente para essas regiões, usem preservativo nas relações sexuais durante o período da gravidez.

AzMina: Uma gestante com Zika vírus terá, com certeza, um bebê com microcefalia?

Não é certeza. Quando a gestante entra em contato com o vírus durante a gravidez, vários fatores influenciam o desenvolvimento ou não de anomalia, alguns ainda desconhecidos. A carga viral a que ela foi exposta, como está a imunidade da gestante, por exemplo, vão determinar a má formação do bebê, e não somente o contato da mãe com o Zika vírus. Na verdade, as gestantes que tiveram filhos com microcefalia foram a minoria de todo o grupo de mães que entraram em contato com o vírus.

AzMina: Existem outras doenças e complicações que um feto em contato com o Zika vírus pode ter?

Sabemos que o Zika é um vírus neurotrópico, ou seja, tem preferência por tecidos nervoso, central e periférico. Por isso, esses bebês podem, sim, ter outras alterações e má formações no sistema nervoso, como calcificações no parênquima [revestimento] cerebral, aumento dos ventrículos cerebrais, etc. Em geral, as complicações ficam restritas ao tecido nervoso, acarretando atraso e prejuízo ao desenvolvimento psicomotor dessas crianças. Também já existem estudos observando que, assim como em outras doenças como a sífilis, a toxoplasmose e o citomegalovírus, o Zika vírus também pode provocar alterações oculares e auditivas.

É importante lembrar que a primeira notificação de um caso de microcefalia associado ao Zika vírus em uma gestação é de novembro de 2015. Estamos falando de algo muito novo, que ainda está sendo estudado. Então, pode ser que outras doenças ocorram associadas com o Zika, mas que, neste momento, ainda desconhecemos.

AzMina: Em relação à gestante, o Zika vírus pode se manifestar de maneiras diferentes do que em outros pacientes adultos?

Já sabemos que não há diferença do quadro de uma gestante em relação ao restante da população adulta. Para a gestante e para qualquer outro adulto, se espera: febre baixa, dor no corpo e nas articulações, conjuntivite, vermelhidão pelo corpo, em um quadro que dure em torno de sete dias. Agora, a grande questão é que, no Brasil, foi observado um aumento de algumas doenças de sistema nervoso dos infectados, como o desenvolvimento da síndrome de Guillain-Barré, uma doença autoimune que leva à fraqueza muscular, e à mielite [doença neurológica]. Mas é uma parcela muito pequena do grupo de pessoas infectadas com o Zika que também vai desenvolver essas doenças, a maioria só terá os sintomas de uma semana.

Além disso, vale ressaltar que apenas 20% das pessoas em contato com o Zika vírus vão manifestar sintomas, todos os 80% não terão sintomas manifestados, mesmo infectados.

AzMina: O surto do Zika vírus já passou no Brasil?

Como já era esperado epidemiologicamente, a incidência da doença pelo Zika vírus caiu consideravelmente nos meses de maio, junho e julho, assim como as outras doenças transmitidas pelo Aedes Aegypti: chicungunha e dengue. Comparando maio a fevereiro, os casos de contato com o vírus caíram 87%. Esse fenômeno já era esperado para essa época do ano por causa das temperaturas mais amenas e o baixo volume de chuvas, fazendo com que o mosquito se prolifere menos nos centros urbanos. É importante lembrar, porém, que o Brasil é um país muito grande e diverso. Então, em regiões como o Nordeste, as temperaturas ainda são elevadas e com chuvas, favorecendo a reprodução do mosquito transmissor. Nestes lugares, ainda há o receio do surto de Zika retornar.

AzMina: Então já está mais seguro engravidar na maior parte do Brasil?
Infelizmente, não. Há uma tendência de queda da infecção pelo Zika vírus e no número de mosquitos no meio urbano. Apesar disso, existe ainda a chance de transmissão da doença. Portanto, independente da época do ano, ainda é importante manter a preocupação de evitar a picada do mosquito transmissor. É difícil dizer que existe e qual será o momento certo para engravidar de maneira segura, sem o medo do zika vírus.

O importante é as pessoas, e principalmente as grávidas, continuarem se protegendo e tomando ações para evitar a reprodução do zika nas cidades, em qualquer época do ano. Os principais cuidados são: telas nas janelas e portas, uso de roupas que cubram a maior parte do corpo e de repelentes. E não podemos esquecer, mais uma vez, que as gestantes devem usar preservativo nas relações sexuais, uma vez que há a possibilidade de transmissão no sexo.

Mãe adolescente de uma criança com microcefalia

Amanda Vitória que nasceu com microcefalia e a mãe Thayanne Alves da Silva

Ela estava convencida: como a Virgem que engravidou do menino Jesus, ela vivia uma maternidade muito rara. Era a única mulher no mundo a ter um bebê com microcefalia. Do momento em que a cabecinha pequena demais de Amanda Vitória saiu de seu ventre e o médico anunciou o nome complicado até três anos atrás, ela sentiu essa solidão pesada. Ninguém contou pra ela que existiam, lá fora, pessoas que partilhavam sua dor.

No momento do parto, ela sentiu um clima esquisito que não sabia compreender. Thayanne Alves da Silva tinha apenas 16 anos. Os enfermeiros retiraram sua filha da sala e, após um tempo, o médico retornou para dar a notícia: sua menina tinha microcefalia.

“Eu não fazia ideia do que ele estava falando. Nunca tinha ouvido falar aquela palavra na vida”, lembra. “Aquilo tudo era uma surpresa. Até o sexto mês, os exames estavam normais. Nem o ultrassom apresentava nada de irregular.”

Os avós paternos disseram que a culpa da má formação era de Thayanne e sumiram. Quando a garota tinha um ano, os pais se separaram. Aos cinco, o pai não quis mais colaborar financeiramente. Com o apoio da mãe – e entre uma doença e outra de Amanda Vitória – Thayanne conseguiu, a muito custo, terminar os estudos, fazer um curso técnico de enfermagem e começar a trabalhar.

No ano passado, quando a filha fez seis anos, Thayanne resolveu engravidar novamente, desta vez uma gestação planejada. Tudo corria bem até que, no terceiro mês de gravidez, o governo anunciou a relação entre Zika e microcefalia. Thayanne ama sua filha, mas sabe o tamanho da responsabilidade de dar conta de uma criança com tantas necessidades especiais – imagine duas.

Temerosa, ela resolveu largar o trabalho e passar a maior parte do tempo em casa, para se proteger do vírus. Mesmo com todos esses cuidados, só mesmo quando o bebê nascer ela terá certeza de que ele não é microcéfalo.

A descoberta científica

No dia 28 de novembro de 2015 foi confirmada a relação entre o Zika vírus e a microcefalia em recém-nascidos. O primeiro caso que se tornou público era de um bebê do Ceará, que faleceu em razão da malformação. De repente, a anomalia, que quase nunca era abordada pela mídia e pelos programas do Ministério da Saúde no Brasil, ganhou destaque nos noticiários nacionais e internacionais.

A relação entre o Zika e a microcefalia em recém-nascidos era inédita na pesquisa científica mundial. A ocorrência de microcefalia no país, contudo, não era novidade. Por que, então, milhares de brasileiros nunca tinham ouvido falar na palavra até então?

O neurologista pediátrico Marco César R. Roque, do Hospital Municipal Infantil Menino Jesus e Grupo Santa Joana, de São Paulo, explica que a microcefalia pode estar relacionada à genética, a uma má formação cerebral e/ou a infecções congênitas de diversas causas, entre elas, o Zika vírus. O que tem ocorrido desde o ano passado, contudo, é que a microcefalia passou a ser não somente uma doença, mas também um sintoma da condição das cidades.

“Estamos falando agora de uma causa de microcefalia que poderia ser evitada caso a população e as autoridades tivessem maior responsabilidade sobre o controle de criadouro dos mosquitos”, afirma.

“Não parece absurda a ideia de que uma simples picada de um mosquito pode condenar um bebê, que se desenvolvia adequadamente no útero materno, a ter seu cérebro comprometido e desenvolver uma série de problemas neurológicos após o nascimento?”, se questiona o neuropediatra.

Olá, seu filho tem microcefalia

“Obrigada por essa entrevista. Nunca ninguém perguntou a história da minha filha… a minha história. Esta é a primeira vez que eu conto como é ter a microcefalia na minha vida”, afirma Thayanne, entre lágrimas e os gritos da filha, que hoje tem 7 anos.

Quando descobriram que estava grávida, Thayanne e o pai da criança haviam resolvido morar juntos. O primeiro desafio do relacionamento veio com o nascimento de Amanda Vitória.

“Eu percebi que estava lutando sozinha, mesmo com ele ao meu lado”, confessa.

“Quando minha filha fez um ano, não dava mais para convivermos, porque eu precisava cuidar dela e já estava fazendo isso sozinha”, conta Thayanne. “Ele vivia mais para o trabalho do que para mim e para a nossa filha, então, me separei”.

No princípio, o pai de Amanda continuou a acompanhá-la nas consultas médicas. Passado algum tempo, Thayanne resolveu se casar novamente, e ele, após perder o emprego, quis passar a responsabilidade para o novo marido de Thayanne.

“Eu me virei, até que descobri que ele já estava em outro trabalho e não me contava para não me ajudar. Mentia que estava desempregado”.

Hoje Thayanne e o pai da criança, que deve dois meses de pensão, brigam na Justiça.

“Ele quer ver a menina, mas não quer ajudar financeiramente porque acha que quem tem que me ajudar é o meu marido”, conta. Os avós paternos também não querem saber da menina desde que descobriram que ela tem microcefalia. “Eles achavam que eu tinha ocasionado aquele problema na criança, então ela deveria ser problema meu, porque tudo era culpa minha”.

Doutor Marco explica que o número de mães que levam os filhos nas consultas nos lugares onde atende é muito maior que o número de pais. “O cenário melhorou. Hoje, há um comprometimento paterno muito maior em relação ao passado. Alguns poucos já assumem completamente os cuidados, os chamamos de ‘pães’”, relata. No que diz respeito a receber a notícia de que o filho terá microcefalia, Marco conta que os pais costumam reagir com mais dificuldade do que as mães, chegando a não aceitarem os filhos.

A rotina de uma mãe com filho microcéfalo

Semanalmente, Amanda frequenta fisioterapia, atividades motoras e faz hidroterapia com a mãe. Mensalmente, faz acompanhamento com neurologista, fonoaudiólogo e dentista. “Todas essas coisas conseguimos pelo SUS, mas o neurologista pediatra é uma coisa muito difícil em Manaus. A gente tem que dormir no posto de saúde para conseguir atendimento. Então, esse médico eu estou fazendo por atendimento particular no momento”, conta.

Thayanne conta que é muito caro dar assistência a uma criança com microcefalia e seu maior gasto hoje são as fraldas, já que a menina tem que usar cerca de cinco ao dia. “Mesmo pelo sistema público, quando conseguimos vaga, também temos gastos. Para ir para a fisioterapia, por exemplo, temos que pagar um táxi ou pedir para nos levarem, porque a criança tem muita limitação motora e física”.

Segundo o doutor Marco, o SUS garante atendimento a pessoas com microcefalia, que exigem cuidados médicos e estímulos contínuos desde o nascimento até a morte. “O SUS está muito longe de ser eficiente, já que são poucos os lugares que oferecem serviços específicos para esses pacientes”, explica. “Inúmeras crianças portadoras de diversos tipos de deficiências esperam meses ou anos por uma vaga”.

A maior frustração de Thayanne hoje é em relação à inserção de Amanda na sociedade. “Eu gostaria muito de colocá-la em uma escolinha. Recentemente, abriram escolas que abrigam crianças como ela em Manaus, mas são particulares. Não dá para eu pagar uma escola dessas, é muito caro”.

Há seis anos, Amanda Vitória recebe do governo federal o Benefício de Prestação Continuada, BPC, pelo INSS, no valor de R$880 por mês. Mas segundo Thayanne, o valor mal dá para pagar a alimentação específica da filha, além das fraldas e outras necessidades diárias. A moça conta que um profissional para ajudá-la nos cuidados com Amanda custaria cerca de R$2 mil mensais. “Gasto esse dinheiro na base do milagre para fazer render”.

Domingo é dia de Amanda correr

O preconceito com relação a crianças com microcefalia é outra frustração de Thayanne. “Já fui maltratada em ônibus circular e até por profissionais da saúde. Um ortopedista do SUS me disse de maneira muito seca que não adiantava eu correr atrás de cirurgias, que minha filha nunca iria andar, que ela não faria nada mais que vegetar em uma cama”. A lembrança do episódio muda o humor de Thayanne.

Depois de uma hora de conversa, a moça demonstra que, assim como a filha, precisa descansar. Antes de se despedir, resolve terminar sua fala. Com a voz trêmula, continua.

“Eu fiquei entalada com aquilo que esse médico disse. Tem coisas que minha filha não fazia, mas que hoje ela faz. Se não fosse a esperança e a perseverança – e muitos médicos bons que me ajudaram nesse percurso -, ela não estaria aqui hoje”. E chora.

“Ela levanta a cabeça, vira de bruços, dá risada, grita. Isso pode não ser nada para algumas pessoas, mas é tudo para mim”.

Mesmo com todas essas limitações, Thayanne vem descobrindo uma maneira nova de interagir a filha com a sociedade: o esporte. Desde 2013, as duas participam de uma corrida de rua em Manaus para pessoas com necessidades especiais. Assim como no dia a dia, na competição as duas são uma equipe: Thayanne vai atrás, empurrando o carrinho, e Amanda vai sentada, distribuindo gritinhos e sorrisos.

Nesta semana ocorre a primeira corrida do ano. “Eu não vou porque estou grávida, mas ela e meu marido vão”. Domingo é dia de Amanda Vitória correr.

1.709 bebês com microcefalia abandonados pelo Estado

Em 2015, a comerciante baiana Josiane Gomes Santana, 36 anos, de Salvador, descobriu que estava grávida pela quarta vez. Agora, de gêmeos. Depois de se recobrar do susto de descobrir que viriam dois bebês de uma só vez, a comerciante continuou sua rotina de grávida, indo nos médicos e fazendo acompanhamento.

Josiane, mãe dos gêmeos Bernardo (à esquerda) e Pietro

No sexto mês de gestação, porém, um de seus bebês parou de se desenvolver. “Até então eu achava que meus filhos seriam normais”, conta. “No sétimo mês, me internei e fiz um ultrassom. A médica chegou na sala e falou que um dos bebês tinha microcefalia. Minha única reação foi perguntar o que era aquilo. Eu tinha ouvido falar em hidrocefalia, não em micro. Quando ela me explicou o que era, entrei em pânico, fiquei muito assustada”, lembra Josiane.

Receber um diagnóstico como este não é fácil, mas é importante que ele venha o quanto antes, preferivelmente ainda durante a gestação, para que os pais se preparem econômica e psicologicamente e adequem a casa para a chegada deste bebê com necessidades especiais. Josiane, por exemplo, conta que foi fundamental descobrir antes do nascimento. “Conforme os médicos foram me explicando o que era a microcefalia, eu fui aceitando e me preparando para o parto. Quando eles nasceram, eu já sabia que minha vida mudaria”.

A notícia

A comerciante Aline Barbosa Oliveira, 28 anos, já havia perdido um bebê. Por isso, quando recebeu a notícia de que estava grávida de novo, logo no mês do Dia das Mães, ficou radiante.

Tudo corria bem até que, na 12ª semana de gestação, os sintomas de uma intoxicação vieram abalar a felicidade da moça. “Fiquei totalmente embolada e febril por um dia. Os médicos diziam que esses sintomas eram uma alergia resultante de uma intoxicação alimentar. Fiz um tratamento e continuei acompanhando a gravidez, com dois médicos diferentes, porque me deu muito medo perder o segundo filho também”. Nenhum dos dois profissionais detectou que a intoxicação alimentar de Aline era, na realidade, o Zika vírus.

Com 19 semanas de gestação, em agosto de 2015, Aline e o marido descobriram que o filho, Pedro, nasceria com algum problema, mas os médicos ainda não sabiam qual seria. “Naquele período, ninguém falava ainda em Zika ainda”, conta Aline.

A primeira desconfiança dos médicos é que Pedro nasceria com hidrocefalia e que Aline teria que fazer uma cirurgia intrauterina para drenar o líquido da cabeça do neném. “Começou então um período horroroso para nós”, conta Aline, que na época morava em Vila Velha, no Espírito Santo. “Todos os médicos que eu frequentava eram particulares, não confiava no sistema público de lá. E mesmo os particulares me recomendaram viajar para São Paulo para fazer exames. Foi em um ultrassom feito na capital paulista que vimos que o Pedro tinha a cabeça menor que a média”. Somente na 22ª semana é que Aline teve a confirmação de que seu neném teria microcefalia.

Aline, mãe de Pedro

Em setembro de 2015, com a confirmação da relação entre zika vírus e microcefalia, a gravidez de Aline começou a ser investigada. Através da análise da placenta, confirmou-se que a má formação havia sido causada pela infecção.

Saber se um filho terá microcefalia ou não pode ser uma agonia que dura uma gestação inteira, já que nem todas as mães conseguem antecipar a notícia, como aconteceu com Josiane e Aline.

Natalia Campos de Assis, 20 anos, de Monte Mor, interior de São Paulo, descobriu somente no parto que sua primeira filha, Eduarda Vitória, tinha microcefalia. “Tive dores durante a gravidez toda e ia sempre nos médicos fazer exames, mas nunca me alertaram de nada”, lembra. No oitavo mês, Eduarda Vitória nasceu, prematura.

“Eu me assustei com a cabecinha dela, parecia que estava tudo para dentro. O médico disse que ela não viveria nem três dias ou, se sobrevivesse, ia ser vegetando”. Naquele momento, Natália descobriu que sua filha tinha microcefalia. “Para mim, foi negligencia dos médicos eu não descobrir antes que minha filha teria a doença. Se me falassem antes, eu ia me preparando para quando ela nascesse, não ia ser no susto”, conta.

O papel do Estado nos casos de microcefalia

O filho de Aline, Pedro, nasceu em fevereiro, no Espírito Santo, e passou 15 dias na UTI por não conseguir mamar em razão de um problema de deglutição. Quando foi para casa, começou outra luta.

“As coisas estão muito precárias em Vila Velha. Assim que o Pedro nasceu, eu entrei na fila para ele ser atendido na APAE”, relata Aline. “Me falavam que quanto mais rápido começássemos os estímulos no bebê, menores seriam os atrasos lá na frente. Então, comecei a ver vídeos no YouTube e eu mesma fazer exercícios com o Pedro, já que ele não conseguia ser chamado e atendido”.

Na terceira reportagem desta série, o neurologista pediatra Marco César R. Roque explicou que os cuidados e estímulos a um bebê com microcefalia devem ser imediatos, com acompanhamento, principalmente, de fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos. Segundo o médico, todos esses atendimentos deveriam ser oferecidos pelo sistema público, porém a estrutura que existe hoje é incapaz de atender a todos os brasileiros nessas condições. “O SUS está muito longe de ser eficiente, já que são poucos os lugares que oferecem serviços específicos para esses pacientes”, explicou Marco, lembrando que o número desses pacientes tem crescido cada dia mais depois do surto, mas sem o SUS acompanhar o ritmo em acréscimo de vagas.

Aline conta que, ao ver Pedro completar dois meses de vida e não conseguir nenhum atendimento, resolveu se mudar do Espírito Santo. “Me bateu um desespero tão grande que eu e meu marido vendemos tudo o que tínhamos e fomos para São Paulo em busca de atendimento para o Pedro”. Faz dois meses que a família está em Campinas, cidade dos pais de Aline, sem trabalho e na casa dos pais dela, mas com atendimentos garantidos ao filho. Hoje o bebê faz até natação. “Aqui em São Paulo tem atendimento, mas é tudo muito perdido e longe. Se você não se informar e for atrás, não consegue”, se queixa a mãe, contudo.

Apesar de ter os atendimentos na APAE e os médicos pelo SUS, Aline reclama que os gastos com remédios, fraldas e leite são muito altos. Assim como a maioria das crianças com microcefalia, Pedro tem que tomar diariamente anticonvulsivos e ter uma alimentação específica. “Por mês, de remédio, a gente gasta em torno de R$120 a R$150. Além disso, ele não mama no peito, então tenho que comprar uma lata de leite por semana”. O valor de cada lata é R$50.

Natália também tem as mesmas reclamações de Aline quanto aos gastos. “Não recebo nenhum auxílio da prefeitura, não posso trabalhar porque meu tempo é só para cuidar da minha filha. Só recebo Bolsa Família. Minha família me virou as costas e minha mãe, que é gari e passa por dificuldades, é quem me dá as fraldas do mês”. Natália foi morar com a família do pai da criança e, mesmo os dois estando separados, ela decidiu ficar na casa por causa da filha.

De todas as mães ouvidas pela reportagem d’AzMina, Josiane foi a que conseguiu atendimento mais fácil, na Bahia. “Em Salvador teve muitos casos, então o SUS está dando prioridade para esses bebês. Acredito que conseguir atendimento aqui está sendo mais fácil que em outros lugares, mas não sabemos até quando teremos essa prioridade, porque essa crise já está engolindo muita coisa por aqui”, reclama a comerciante.

“A imunidade do meu filho é muito baixa e ele pega muita gripe, então vamos para a emergência nesse tempo mais frio. Outro dia, chegamos lá e a médica não quis nem vê-lo porque disse que provavelmente ele, por ser microcéfalo, precisaria de um leito e lá não tinha lugar. Mas ela nem olhou para ele, nem me deixou entrar no consultório e meu filho estava sufocado. Tive que correr para outro bairro para meu filho ser atendido e internado”, denuncia Josiane.

Por morar com irmãos e sobrinhos e receber ajuda deles, Josiane é a única das mães que não saiu do trabalho com o nascimento do filho. Ela trabalha no bar do seu pai e ganha cerca de R$450 por mês. O pai dos gêmeos é separado de Josiane. Ele está desempregado e só ajuda quando pode, seja com dinheiro ou levando os filhos nos médicos.

“Nosso sustento vem de lá, não posso não trabalhar. Eu ganho Bolsa Família, mas é uma besteira diante dos gastos, por volta de R$140. Agora estou correndo atrás do benefício que o meu filho Bernardo tem direito. Estamos agendados para sermos atendidos no INSS”. Josiane se refere ao benefício de Prestação Continuada, pago pelo governo federal e assegurado por lei, que permite o acesso de idosos e pessoas com deficiência a uma renda de um salário mínimo por mês. Mas para poder receber o benefício, a renda familiar deve ser inferior a 1/4 do salário mínimo.

“Eu e meu marido estamos desempregados desde o nascimento do Pedro, mas ainda não conseguimos o benefício”, conta Aline. “É vergonhoso: o governo estipula que, para conseguir o benefício, cada pessoa da casa tem que ganhar R$200. Como eu estava recebendo o dinheiro de licença maternidade, porque eu pagava particular durante a gravidez, não tive direito a receber o BBC. Os gastos com o Pedro são muito grandes, então agendei outro atendimento no INSS, já que a minha licença maternidade termina este mês e meu marido ainda está desempregado”.

Josiane e Natália também entraram com pedido no INSS para receber o benefício, mas até agora, com quase um ano de vida dos bebês, ainda não conseguiram. Natália é a mãe que está a mais tempo esperando uma resposta do governo: cinco meses.

Uma geração de bebês microcéfalos: de quem é a culpa?

Somente no mês de julho deste ano, mais outros 22 casos de microcefalia foram confirmados. No período, também foram confirmadas mortes de 102 bebês em decorrência da anomalia. O número mais recente demonstra que já são 1.709 bebês com microcefalia desde novembro. Os dados são do Ministério da Saúde.

Grávidas foram orientadas a passar repelente para se protegerem do Aedes Aegypti e a usarem preservativo nas relações sexuais por causa da transmissão do Zika vírus; as mulheres em geral foram “aconselhadas” pelo governo federal a não engravidarem. Em poucos meses, o surto de Zika vírus causou pânico na população nacional e internacional. Cerca de 170 cientistas pediram à Organização Mundial da Saúde, OMS, e ao Comitê Olímpico Internacional que alterem as datas ou a sede dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. O medo do Zika vírus no Brasil correu o mundo.

As orientações do governo, apesar de necessárias, foram isoladas e levaram parte da população a acreditar que o culpado desses casos de microcefalia não era o Estado, segundo explicou a médica infectologista Érika Fontana Sampaio (leia entrevista completa aqui), mas sim as próprias mulheres.

Todas as mães relataram ter ouvido questionamentos sobre o que elas “fizeram” para seus filhos nascerem com microcefalia.

“Me perguntavam muito quando a mídia falava mais em Zika vírus: ‘nossa, mas você não usava repelente?’, como se a culpa da microcefalia do Pedro fosse minha”, conta Aline.

Em resposta à postura do governo brasileiro e de outros governos sulamericanos, o Alto Comissário para os Direitos Humanos da ONU, Zeid Ra’ad al-Hussein, rebateu em um comunicado: “o conselho dado por alguns governos às mulheres para que evitem engravidar ignora que muitas delas não têm qualquer controle sobre o momento ou as circunstâncias nas quais podem ficar grávidas, especialmente onde a violência sexual é bastante habitual.”

Segundo os médicos ouvidos pela reportagem, o problema do surto de Zika vírus revelou uma incompetência do Estado com saneamento urbano. Para os profissionais, pedir para as mulheres não engravidarem não resolverá o problema de recém-nascidos com microcefalia no Brasil. Assistência estatal aos já nascidos e combate ao mosquito, sim.

Mulheres criam rede de solidariedade para famílias de bebês com microcefalia

Roberta, à direita, organizou arrecadações para as famílias mais necessitadas que encontrou.

Tudo começou com a empatia de uma mulher por outras e foi se alastrando como uma grande rede de apoio material e emocional para famílias de bebês com microcefalia. Hoje, dezenas de mães contam com essa comunidade para conseguirem criar seus filhos com o mínimo de dignidade.

Segundo a mestre em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem, Ana Carla Vieira, essas famílias precisam de mais que apenas apoio médico assegurado pelo Estado, o que não vem acontecendo. “É essencial fornecer apoio psicológico e financeiro, já que muitas das mães precisam se dedicar exclusivamente aos cuidados do filho”, explica. “Um dos grandes estressores da vida de mães é a busca por atendimentos aos filhos que muitas vezes são inacessíveis, demorados ou inexistentes. E por “serviço de saúde” é importante entender diversas especialidades para além da medicina: enfermagem, fonoaudiologia, terapia ocupacional, fisioterapia e etc, exames, cirurgias, acesso a hospitais.”

Enquanto esse tipo de serviço público não vem, nos salva a irmandade feminina. A empatia por outras mães foi, por exemplo, o motor de Roberta Cerantula. No final do ano passado, nos meses em que o país viva o surto de Zika vírus, ela descobriu que estava grávida do segundo filho. A preocupação em ter de se proteger em um período tão delicado fez a paulistana pesquisar sobre o tema na internet e encontrar a página “Cabeça e Coração”. A plataforma, criada pela jornalista Maria Clara Vieira, pela estudante Maria Julia Vieira e pela economista Cida Nicolau, reúne contato e fotos de mães de bebês com microcefalia que precisam de doações e serviços.

Foi então que Roberta percebeu que também podia fazer parte da outra parte do processo e dar uma mão a mães que não tivessem acesso à mesma rede de apoio que ela. “Fiz uma triagem com três famílias que fossem de São Paulo, para facilitar a logística e para que eu pudesse estar perto dessas pessoas”, conta Roberta. Lançou a página “Microcefalia Vamos Ajudar?”, e mobilizou dezenas de pessoas a doarem artigos de necessidades específicas para essas famílias e produtos em geral, que seriam vendidos e se converteriam em dinheiro para as famílias no que fosse necessário.

Passada essa primeira fase, porém, Roberta enfrentou o problema da logística. Como o surto de Zika vírus atingiu principalmente o Nordeste brasileiro, começaram a surgir pedidos de mães de Natal, Recife e outros lugares atingidos. “Como as pessoas não gostam de doar dinheiro, não tive recursos para fazer com que o projeto crescesse muito para além de São Paulo. É muito caro enviar uma doação para o Nordeste”, relata.

A moça desabafava com uma amiga, que preferiu não ter o nome revelado, quando espalhou o fogo da mudança pro coração dela também: a empresária decidiu que iria bancar a logística do projeto. “Agora estamos em uma triagem para escolher as famílias de fora de São Paulo que mais precisem”. A última ação foi mandar doações, como fraldas e produtos de higiene, para um bebê que está em Natal e nasceu com um grau muito severo de microcefalia.

“Criar um bebê especial não é fácil para quem tem emprego, recursos, família, imagina para quem não tem?”, questiona Roberta.

Além do dinheiro

Pensando no estado psicológico de quem assume a maior parte das responsabilidades sobre essas crianças com necessidades especiais, as psicólogas Anthiele Martins e Julliene Salvino, de Recife, fundaram o projeto “Mainha – mães de bebês com microcefalia”. O grupo existe para que essas mulheres possam compartilhar experiências, elaborar o que sentem e construir uma nova perspectiva frente ao diagnóstico. Através da fala, as psicólogas acreditam, essas mães conseguem aliviar sentimentos de angústia, medo e rejeição.

“Sempre que conversávamos sobre o surto de Zika, nos vinha a preocupação: como essas mães estão reagindo?”, explica Anthiele. “Tudo pode ser agravante nessa situação: aquela gravidez poderia ser indesejada; ou o contrário, pode ser uma gravidez muito planejada e idealizada. De uma hora para outra, independente do caso, vem a microcefalia. Como ficam essas mulheres?”.

Além de oferecer o atendimento presencial e em grupo a essas mães, as psicólogas do “Mainha” produzem vídeos esclarecedores. Mães interessadas podem contatar as psicólogas através da página do grupo no Facebook.

“Cuidar dessas mulheres é também cuidar de seus filhos. A partir do momento em que uma pessoa é cuidada, ela se torna uma cuidadora melhor”, explica Anthiele.

O momento da notícia

Com 35 semanas de gravidez, a pressão alta de Aline Oliveira fez com que os médicos resolvessem fazer seu parto ainda prematuro para salvar a vida do bebê, Pedro. O estresse, ela acredita, pode ter colaborado para esse desfecho.  “Fiquei muito tensa nesse final de gestação. Além disso, ouvi muita coisa desnecessária e muito foi dito sem cuidado. Um médico, por exemplo, falou que o Pedro não nasceria; outro, que ele viveria só dois meses; vários ficaram fazendo previsões horrorosas sobre o futuro dele, sem terem certeza das coisas”.

Natalia Gomes também sofreu um choque ao descobrir, no parto, que sua filha tinha microcefalia: “Quando ela nasceu, eu me assustei com a cabecinha dela, parecia que estava tudo para dentro. O médico disse que ela não viveria nem três dias ou, se sobrevivesse, ia ser vegetando”, desabafa. “Muita gente me relatou que, quando recebeu a notícia, teve uma sensação de luto. Eu chorei muito, mas não cheguei a sentir isso. E aceitei, mas a gente sempre quer um filho que não tenha dificuldades na vida.”

Segundo a psicóloga Anthiele, a angústia do momento em que a notícia é recebida pode gerar depressão pós-parto e transtornos de ansiedade. “As informações ainda soltas que os médicos podem dar, até pelo fato de o surto ser algo recente, podem gerar confusão nessas mães e acarretar muita angústia e ansiedade”, explica. A profissional ainda afirma que, para os pais que não abandonaram esses bebês, o atendimento psicológico também é importante, assim como é para as mães.

Nenhuma das mães entrevistadas para esta série recebe atendimento psicológico. Algumas afirmaram que já pediram o serviço à assistentes sociais, mas que desistiram por causa da burocracia.

Enquanto o atendimento profissional psicológico não chega, as mães contam com a força da rede de amizade que elas formam nas salas de espera de consultórios e hospitais. “Na maternidade onde tive meus gêmeos, várias outras mães tiveram filhos com microcefalia. Então, nós formamos um grupo para mantermos contato”, conta Josiane Santana. “Conversamos sobre nossa rotina, sobre o que os médicos falam, trocamos experiências. Mas quase nunca nos vemos porque a vida não permite, fica muito corrida. Mas quando nos cruzamos em salas de espera, é aquela alegria para conversar!”

Para Ana Carla Vieira, a idealização da figura da mãe em nossa cultura dificulta ainda mais esse processo. “Devido à disseminação de uma visão romantizada sobre a maternidade, muitas mulheres levam um choque inicial com as tarefas e dificuldades sobre as quais ninguém as havia alertado – tendo filhos com microcefalia ou não”, esclarece. “A depressão pós-parto, por exemplo, é um fenômeno pouco divulgado ou discutido e inúmeras famílias não conseguem identificá-la devido ao tabu que é uma mãe sentir-se deslocada ou deprimida após a chegada do bebê. ”

Ainda segundo a profissional, quando um bebê nasce com uma deficiência como a microcefalia, as reações podem ser adversas. “É comum falar sobre a elaboração do luto do filho ‘perfeito’, ou seja, a mudança de imagem desse filho idealizado para a imagem do filho com características vistas como incomuns, como a microcefalia. Esse processo pode envolver a negação, a raiva, a culpa, o medo, a resignação, a revolta. Essas reações não ocorrem necessariamente em todas as mães, não têm uma ordem pré-definida, nem um tempo previsto”.

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