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Garota Dinamarquesa: um – ótimo – filme de trans pra iniciantes

O longa que estreia hoje emociona mesmo quem ainda não abriu o coração para a causa, com o drama de uma mulher presa num corpo masculino e numa era de intolerância

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P ara quem já é apaixonado por produções bem mais “avançadas” no tema transexualidade, como “Transparent” ou até “Orange is The New Black”, “A Garota Dinarquesa” pode parecer um filme leve para iniciantes. Este é, contudo, seu maior mérito: o longa que estreia hoje emociona mesmo quem ainda não abriu o coração e a cabeça para a causa, com o drama pessoal de uma mulher presa em um corpo masculino e numa era de intolerância.

O enredo é inspirado nos diários de Lili Elbe (Eddie Redmayne), que nasceu Einar Mogens Wegener e foi a primeira trans a sujeitar-se a uma cirurgia de troca de sexo. A história começa com o feliz casal Einar e Gerda (Alicia Vikander) em clima de lua de mel, até que a esposa precisa que ele coloque um vestido, meia calça e sapatilhas para substituir uma modelo que se atrasou. Einar se sente tão confortável naquela pele feminina que começa a questionar sua identidade, e o casal passa então por dezenas de provações por não saberem como lidar com a questão: seria isso uma doença? um desvio hormonal? ou algo que deve ser abraçado? Num mundo de preconceitos com rótulo de falsa ciência, no entanto, vence o amor entre as duas.

Como todos os filmes baseados em fatos reais de Hollywood, muito há de irreal na trama. O longa ignora, por exemplo, que na vida real Lili morreu em decorrência da rejeição de um útero implantado após a troca de sexo – ela sonhava em ser mãe naturalmente. Também há fortes evidências de que o amor de Gerda por Einar nunca tenha passado da mais profunda amizade: ela provavelmente era lésbica. A maneira como a história é bordada, porém, leva o tom ideal para introduzir no tema os corações mais frios e endurecidos pelo preconceito. Solucinhos baixos acompanharam quase todo o filme no cinema em que o assisti nos Estados Unidos.

Talvez eu seja suspeita pra falar — sou nada secretamente apaixonada pelos lábios carnudos de Eddie –, mas achei fabuloso ver um homem cis interpretar esse papel, ao contrário do que têm dito os críticos. Claro que não estou defendendo a subrepresentação da população trans na equipe do filme – a primeira lição de casa de um filme com essa temática devia ser reduzir o preconceito na seleção de “A Garota Dinamarquesa”.

No entanto, há algo de prazeroso em ver um homem sujeitando-se a vestidos que pinicam e saltos altos. E uma coisa que me fascina no trabalho dos artistas é, justamente, a capacidade de vestir a pele do oprimido e transmitir empatia através desse exercício. E isso Redmayne faz com maestria.

Estudou expressões e gestos de mulheres, entrevistou dezenas de trans para entender e sentir suas dores. Há alguns anos ele vêm mostrando um desempenho excepcional nas telonas e o papel de Lili só acrescenta à sua lista de grandes interpretações. A cena em que ele fica nu diante do espelho do teatro – nu frontal em que se vê TU-DI-NHO – e esconde o pênis por entre as pernas para simular uma vagina está entre as mais provocantes e tocantes que eu já vi em Hollywood.

O filme também foi criticado por dar excessiva importância à cirurgia de troca de sexo, já que hoje compreendemos que a identidade feminina vai muito além da vagina – e só um terço das transexuais de fato sente a necessidade de fazer o procedimento. Mesmo assim, acho a análise  infundada. Temos que imaginar que a história se passa em 1920, ano em que o movimento LGBT era gestado nos armários e a teoria queer nem sequer existia – só foi nascer 60 anos depois! Logo, é natural que uma transexual, neste contexto, enxergasse como a única possibilidade de expressão da feminilidade aquilo que tinham como modelo também as mulheres heterossexuais: seios, vagina e, principalmente, útero.

Gosto também de como o filme mescla os limites entre sexualidade e amor humano: o amor ali retratado entre Gerda e Einar (e depois, Lili) não é, na verdade, um dos tipos mais sublimes de amor que podemos buscar? Certamente nunca faltou química entre as duas personagens antes da imposição do dilema de identidade. Não teriam elas também sido vítimas de um regra heteronormativa que determinava que não poderiam ser casadas após a transição? Será que o amor tem mesmo gênero? Será que, como Redmayne, todos os homens não deviam fazer uma jornada em busca da mulher em si e da empatia?

Entre Einar, Gerda e Lili fica insinuada a reflexão: os limites entre o que é ser homem e o que é ser mulher nunca foram, afinal, adequados.

Eddie interpreta Lili Elbe - Foto: Divulgação
Eddie interpreta Lili Elbe – Foto: Divulgação

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