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Dossiê das Delegacias da Mulher

Levantamento das delegacias da mulher feito pela revista AzMina mostra que culpabilização da vítima, despreparo dos atendentes, ausência de plantões noturnos e aos finais de semana e falta de infraestrutura são os maiores gargalos

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Delegacias da Mulher só existem em 7,9% das cidades brasileiras

As Delegacia das Mulher representam a porta de entrada em uma rede de apoio que a ajuda a sair da situação de violência. Arte: Larissa Ribeiro

O ex-namorado de Rose* nunca aceitou o fim do relacionamento. Por quase 15 anos, ele fazia de tudo para transformar a vida dela em um inferno, com ameaças, humilhações em público e até agressões físicas. O medo era parte da vida dela até que criou coragem, procurou uma das Delegacias da Mulher (DEAM) da sua cidade, no interior da Paraíba, e prestou queixa contra ele. Os policiais ouviram seu depoimento e a trataram com gentileza e atenção. Ela pediu uma medida protetiva contra o ex, que foi concedida na semana seguinte. Desde então, há quase três anos, Rose vive em paz. “Sempre que fico sabendo de uma história dessa natureza, conto o que já passei e encorajo outras mulheres a irem à delegacia e a reagirem porque, para mim, a Justiça funcionou”, conta.

Como  Rose, existem outras 76 mil mulheres que sofreram agressões ou ameaças por parte de parceiros ou ex-parceiros e buscaram ajuda em 2015 segundo dados da Central de Atendimento à Mulher do Governo Federal. E, para essas mulheres, a Delegacia da Mulher representa a porta de entrada em uma rede de apoio que a ajuda a sair da situação de violência.

Com equipes majoritariamente femininas, ela tem a função de acolher a mulher de maneira humanitária e não preconceituosa, garantir sua proteção, investigar a denúncia e encaminhar a mulher, dependendo do caso, para o sistema de Justiça, casas abrigo, hospitais, assistentes sociais e outros órgãos que possam dar suporte na quebra do ciclo da violência doméstica. Mas apesar do seu objetivo nobre, nem tudo funciona perfeitamente nelas: mal atendimento, machismo institucional e falta de estrutura são alguns dos problemas que existem.

Por quatro meses, mergulhamos nos dados públicos, ouvimos quem já precisou de atendimento e visitamos diversos cantos do Brasil para fazer um dossiê completo da situação das Delegacias da Mulher do Brasil.

O nosso balanço é de que as delegacias especializadas são essenciais e indispensáveis para o combate à violência contra a mulher. A maior parte das profissionais são bem esclarecidas e dedicadas à questão. Porém, o cenário ainda está longe do ideal: as Delegacias da Mulher são poucas e inacessíveis (só existem em 5% das cidades brasileiras), têm muitos problemas de recursos e graves denúncias de mal atendimento. Além disso, algumas das unidades informadas pelos Estados sequer existem.

A história das delegacias

Criadas há 30 anos, as delegacias especializadas para atender mulheres surgiram inicialmente em São Paulo, como resposta ao grande número de reclamações quanto ao atendimento recebido por mulheres nas delegacias comuns. Foi no governo de Sérgio Montoro, quando Michel Temer era secretário de segurança pública do estado, que surgiu a proposta da delegacia, em 1985.

Para elaborar seu projeto, os órgãos públicos trabalharam junto de representantes do movimento feminista. E o resultado foi uma delegacia cuja equipe era composta majoritariamente por mulheres e cujo objetivo era acolher as denúncias de violência e abuso sexual. No entanto, ninguém imaginava a grande procura que haveria por mulheres agredidas por seus maridos e parceiros.

“No primeiro dia, nós tivemos mais de 500 mulheres na fila aguardando para serem atendidas”, conta Rosemary Correa, a primeira delegada da mulher do país e atual presidenta do Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo.

“Com os mais variados tipos de lesões, os mais variados tipos de problemas. Inclusive mulheres curiosas, que foram lá para saber se realmente estávamos inaugurando uma Delegacia da Mulher. E a partir daí a gente acabou trazendo à luz a verdadeira tragédia que acontecia dentro do ‘lar doce lar’”, complementa ela.

A partir daí,a questão da violência doméstica passou a ser entendida como um problema e também ganhou visibilidade. O assunto deixou de ser algo que acontecia apenas entre quatro paredes, um problema de marido e mulher, e novas políticas públicas foram surgindo, não apenas no estado de São Paulo. O modelo da delegacia da mulher foi replicado por todo o país e até no exterior.

Mas foi em 2006, com a criação da lei Maria da Penha, que as delegacias da mulher passaram a ganhar maior importância em todo o país e começaram a receber um olhar mais atento dos governos, dentro das políticas de combate à violência contra a mulher. Além de orientar a adoção de atendimento especializado nestas unidades, a lei criou o dispositivo das medidas protetivas específicas para mulheres, o que possibilitou que as delegacias passassem a dar uma resposta rápida às vítimas de violência.

A situação hoje em dia

As Delegacias da Mulher são todas coordenadas pelas polícias civis dos estados brasileiros, que ficam subordinadas às secretarias de segurança pública estaduais. O que significa que cada estado coordena com autonomia a criação e condução das delegacias, sem que haja um controle centralizado a nível federal. Existe apenas uma norma técnica, de 2010, que especifica as diretrizes ideais de funcionamento das Delegacias da Mulher, mas não existe fiscalização para assegurar que essa norma é de fato cumprida – e ela não é na maior parte do país. Além disso, não existe, por exemplo, nenhuma lei que determine quantas delegacias devem existir em cada localidade e como o governo deve trabalhar para criá-las.

Para se ter ideia, é até complicado encontrar informações básicas como endereço e telefone da maior parte dessas delegacias no Brasil. Segundo a CPMI da Violência Doméstica, em 2012 havia 432 delegacias no Brasil.

Entramos em contato com todas as secretarias de segurança pública dos estados brasileiros para obter os dados das delegacias da mulher. Atualmente, os governos alegam a existência de 461 delegacias especializadas no país, distribuídas como pode ser visto no gráfico abaixo.

São Paulo é o estado com mais delegacias da mulher, no entanto, a redação verificou que algumas das delegacias informadas pela secretaria de segurança pública não existem. Arte: Thiago Souza

Mas, apesar de os números absolutos serem importantes, fizemos algumas comparações para ficar mais fácil de entender o que eles representam.

Se essas 461 delegacias da mulher fossem uniformemente distribuídas, teríamos uma delegacia para atender cada 210 mil mulheres do país.

Segundo a norma técnica, cidades de até 300 mil habitantes devem ter duas delegacias especializadas no atendimento à mulher. Ou seja, em nível nacional, estamos bem longe da orientação. Mas isso fica pior se notarmos que apenas 7,9% das cidades brasileiras contam com uma delegacia da mulher, o que denuncia que a distribuição delas é bem desproporcional.

O gráfico revela como, mesmo nos estados com mais delegacias especializadas, existe uma grande concentração do atendimento. Arte: Thiago Souza

Maria da Penha, a mulher que deu nome à lei criada em 2006, acredita que um dos principais empecilhos para que o combate à violência contra a mulher seja efetivo é a pequena quantidade e má distribuição das delegacias especializadas no país: “Nós temos, hoje em dia, redes de atendimento à mulher em todas as capitais brasileiras, mas os médios e pequenos municípios ainda estão muito desassistidos em relação a essa implementação”, afirma.

No mapa abaixo, é possível ver a distribuição da quantidade de delegacias em relação à população de mulheres de cada estado. Enquanto Roraima, que tem apenas uma Delegacia da Mulher, tem a proporção mais baixa (22 mil mulheres são atendidas por essa delegacia), o Distrito Federal tem a mais alta: 1 milhão e 341 mil mulheres atendidas pela Delegacia da Mulher.

Arte: Thiago Souza

E como são medidos os resultados dessas delegacias? Infelizmente, existem muito poucos dados em relação a isso. Principalmente se entendermos que as delegacias são parte de uma rede de proteção à mulher que é somente uma resposta imediata a um problema cuja solução a longo prazo está em mudanças estruturais, culturais e sociais bem mais profundas.

No contexto atual, as DEAMs ainda podem significar a porta de saída para mulheres de situações de violência e até mesmo pode salvar sua vida.

Como explica a delegada Anamelka Cadena, responsável pela Delegacia de Feminicídio do Piauí: “Nós reunimos aqui dados das mortes de mulheres de todo o estado, que são passados para um setor que analisa essas informações e as usa para criar políticas públicas. E já conseguimos ver que os casos de violência doméstica e familiar que não chegam à polícia, que não são acompanhados, são os que levam ao feminicídio. A maior parte das mortes de mulheres acontecem porque há um histórico de violência doméstica sem nenhum tipo de influência institucional”.

O estado do Espírito Santo conseguiu verificar, na prática, a eficiência de Delegacias da Mulher organizadas. Segundo o Mapa da Violência, em 2013 foi o estado com a segunda maior taxa de feminicídio: 9,3 mulheres a cada 100 mil. Diante desse cenário, em 2015 o governo iniciou uma reordenação dos serviços de atendimento à violência doméstica.

Foi criada uma delegacia de plantão, para atendimento 24 horas à violência doméstica na região metropolitana de Vitória, e todas as delegacias da mulher passaram a contar com assistente social. Também foi criada uma Delegacia de Homicídio de Mulheres, focada em investigar os casos de feminicídio. Segundo a subsecretária de políticas para mulheres do estado, Fernanda Braumer, houve em 2016, entre agosto e janeiro, uma redução em 27% nas mortes de mulheres em relação ao mesmo período de 2015.

Governos dizem ter mais delegacias do que possuem

Se os números já parecem ruins, a verdade é que a realidade é ainda pior. Alguns dados sobre as DEAMs fornecidos pelos governos estaduais à reportagem eram falsos.

Em diversos dos municípios citados como tendo uma Delegacia da Mulher, ela não existe de fato. Em alguns casos, existe no papel; em outros, trata-se apenas de uma pasta em uma delegacia comum, sem nenhum tipo de atendimento diferenciado.

Em São Paulo, por exemplo, a Secretaria de Segurança Pública informa que existem 132 DEAMs. Mas nós fomos a uma destas delegacias, na cidade de São José do Rio Pardo, e constatamos que ela não existe há cinco anos, desde que o governo realizou o que chama de “reengenharia” da polícia civil. A mudança, que visava otimizar os custos e trabalho do órgão, fundiu delegacias especializadas com as comuns e, na prática, o atendimento passou a ser feito todo junto – ou seja, sem atendimento especializado para a mulher.

Telefonamos para algumas outras delegacias da lista fornecida e o mesmo foi constatado em outras cidades. Quando questionada, a secretaria de segurança pública, através de sua assessoria de imprensa, alegou que as delegacias existem, sim, e que houve confusão dos policiais que falaram com a reportagem.

Algo parecido acontece em Minas Gerais, onde o governo informou existirem 71 DEAMs. Entre elas, era citada uma em Ouro Preto, cidade que visitamos dias antes, exatamente para conhecer o movimento de mulheres que lutam por uma delegacia especializada na cidade. Da mesma maneira que no estado vizinho, o governo alegou que existe uma área de atendimento para mulheres dentro da delegacia comum. Mas, na prática, as mulheres da cidade alegam que não acontece o atendimento especializado.

Pior sem ela: A vida em cidades sem Delegacias da Mulher

Imagine uma delegacia de polícia comum durante a madrugada. Os policiais ali de plantão, sobrecarregados e exaustos, sambando para atender as denúncias que chegam enquanto investigam e cuidam da papelada das que vieram mais cedo. Na sala de espera, PMs acompanham um homem acusado de atirar em outro, um casal que veio dar parte do sequestro do filho, e uma mulher com seus dois filhos que foi ameaçada de morte pelo marido. Quem você acha que é prioridade de atendimento para os policiais sobrecarregados? Provavelmente, eles vão atender primeiro o sequestro ou a denúncia de tiro. A briga de casal não é urgente, né?

Este exemplo foi dado por um delegado comum do interior de São Paulo, que preferiu não ser identificado. Ele tentava explicar porque fazia falta uma delegacia da mulher na cidade.

O ponto que ele defendia era que, para os policiais em geral, a violência doméstica não é um assunto de polícia-  e muito menos urgente do que a maioria dos outros crimes.

E este é o cenário que quase 95% dos municípios brasileiros oferecem para o atendimento às mulheres vítimas de violência. “Os policiais não entendem que um problema doméstico pode ser de polícia”, afirma a delegada do plantão da mulher em Vitória, Natália Tenório. O que leva também a um atendimento não receptivo, em que acontece julgamento e constrangimento da vítima.

Iara* experimentou isso na pele. Sofreu abuso de seu cunhado aos 11 anos de idade e, com muita dificuldade, contou o fato para a mãe, que logo a levou para a delegacia. “Foi muito difícil, é muito difícil falar sobre isso e só tinha homem por lá. Precisava ter uma mulher que me entendesse, com quem eu ficasse à vontade para me abrir”, comenta frustrada.

Como não conseguiu contar tudo o que viveu, na época, o agressor não foi punido. Anos depois, ela passou por uma situação de ameaças online e, mais uma vez, teve de encarar os policiais que não pareciam entender o que ela vivia. Por isso, ela entrou para o grupo de mulheres que luta por uma delegacia da mulher em sua cidade, Ouro Preto, Minas Gerais.

O problema é depender de vontade política

Mulheres de Ouro Preto, MG, se reúnem para discutir próximos passos da luta por uma delegacia especializada na cidade.

Este grupo é o coletivo Mulheres Unidas da Asapop (M.U.N.A.), formado por mulheres dos mais diferentes grupos sociais e etários de Ouro Preto e que, há cerca de dois anos, trabalha para exigir a criação de uma delegacia da mulher na cidade.

“Hoje, a cidade conta com uma delegacia convencional que não tem estrutura para atender mulheres, não tem uma área separada para os atendimentos a mulheres. E a gente recebe muita reclamação de um atendimento pouco humanizado”, explica Hellen Guimarães, uma das ativistas do movimento.

A cidade, teoricamente, conta com uma pasta de atendimento à mulher. Mas, na prática, isso não tem nenhum significado, segundo mulheres ouvidas na cidade, já que o atendimento é feito na delegacia comum de polícia civil.

Há relatos de vítimas que tiveram de aguardar atendimento junto de seu agressor, como conta Nara no vídeo abaixo, outros de desrespeito e de descaso no atendimento.

“Na delegacia especializada existe uma compreensão de como a sociedade machista nos agride. Lá, as policiais capacitadas nos ouviriam de forma digna para relatar o que de fato ocorreu”, comenta Carmen*, que entrou para o movimento após sofrer uma agressão e ter sido repetidamente desestimulada pelos policiais, para que desistisse da queixa.

O primeiro movimento do M.U.N.A. na luta por uma delegacia na cidade foi um abaixo assinado e uma panela de pressão (uma espécie de petição online), além de uma campanha com depoimentos nas redes sociais. No entanto, a pressão não surtiu efeito e o grupo não teve nenhuma resposta dos políticos.

“É bem complexo principalmente por envolver recursos financeiros. A decisão ocorre a nível estadual, mas a articulações municipal também é muito importante e pode influenciar nesse processo”, explica Hellen, e por isso elas seguem pressionando os políticos locais e estaduais, tentando unir coletivos e partiram para uma nova forma de ação: a ativação do conselho de políticas para mulheres. Com ele, elas acreditam que vão poder atuar mais próximas do poder público na construção de políticas para mulheres e até conseguir repasses de verba. “O difícil é que essa questão da delegacia depende de vontade política”.

Núcleos e pastas especializadas seriam uma opção

A ampliação do número de delegacias da mulher fora das capitais dos estados é uma questão urgente, mas depende de muitos fatores para que aconteça. Para lidar de forma paliativa com o problema, alguns estados adotam a criação de um núcleo de atendimento à mulher dentro da delegacia comum.  Para a deputada Jô Moraes, que presidiu a CPMI da violência doméstica de 2012, esta é uma boa alternativa.

“Se houvesse nas delegacias comuns uma área especializada preparada e qualificada para o atendimento às mulheres, poderíamos minimizar os problemas”, opina.

No entanto, não é isso que ocorre na prática. Ouro Preto mesmo, como já mencionado, conta com uma pasta para o atendimento às mulheres e isso não significa nada. Mesmo quando o núcleo efetivamente existe, o atendimento ainda é problemático, como foi constatado em 2012 pela CPMI da violência doméstica.

“Outro aspecto relevante está relacionado aos Núcleos de Atendimento em Delegacias, cuja precariedade também foi observada pela CPMI. Além da falta de capacitação dos profissionais, incluindo delegados, os núcleos em geral, contam com poucos servidores”,complementa Jô. “O Núcleo da 52 Delegacia Regional de Planaltina de Goiás, por exemplo, era formado apenas por uma escrivã.”

Para alguns, trabalhar em Delegacia da Mulher é punição. Para outros, uma honra

Primeira delegada trans do Brasil, Laura optou por trabalhar na delegacia da mulher para evitar preconceito dos colegas.

“O desgaste emocional é muito grande. Já vi muito policial não aguentar. Você vê criança estuprada, filha grávida do pai…”, foi a  resposta do agente de polícia Thiago Tonolli, do Plantão de Defesa da Mulher de Vitória, quando questionado sobre como é trabalhar na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher. Segundo ele, os casos exigem muito mais estabilidade emocional dos policiais do que uma delegacia comum.

A delegada Samira Fares Negrini, da 7a Delegacia da Mulher de São Paulo, concorda com ele. Seu trabalho foi um verdadeiro desafio desde o começo. “A gente tem o hábito de não usar a empatia, de não se colocar no lugar do outro. E eu tinha uns conflitos pessoais porque eu venho de uma família de mulheres extremamente independentes, minha mãe jamais aceitaria qualquer tipo de agressão. E elas, as mulheres que buscam a gente, se submetem a determinadas situações que no início, era difícil pra mim entender“, confessa.

“Então quando eu vim pra cá, eu assumi um desafio e hoje eu percebo que eu rompi essa barreira, eu consigo me colocar no lugar delas, eu consigo entender que elas estão naquela situação por N motivos e eu não tenho o poder de julgá-las.”

Para ela, trabalhar na delegacia especializada é uma honra, porque, além do aprendizado, a questão da violência contra a mulher é uma das grandes questões atuais e as delegacias são parte essencial da solução. No entanto, ela acredita que o dia a dia pode ser um pouco maçante, pois o trabalho acaba se tornando repetitivo, principalmente devido ao grande volume de burocracia. No entanto, para muitos policiais a ideia de trabalhar nas DEAMs e DDMs traz o sentimento oposto.

Rosemary Correia, atual presidenta do Conselho da Condição Feminina, que foi a primeira delegada da mulher do Brasil, em 1985, nota que existe uma resistência dentro da Polícia Civil em relação ao trabalho nas especializadas. “A gente sabe que existem policiais homens e mulheres que não gostam de trabalhar na delegacia da mulher, porque acham que all nao se ‘faz polícia’. Polícia, para eles, é sair caçando bandido, entrando em favela e não atendendo o que costumam chamar de ‘zica entre marido e mulher’”.

Para muitos policiais, inclusive, a designação para atuar na Delegacia da Mulher é considerada um punição, conforme conta Beatriz Acciolly em sua tese de mestrado em antropologia social “A Lei Maria da Penha e o Trabalho Policial em duas Delegacias da Mulher de São Paulo”. Ela acompanhou o expediente da 1a e da 6a delegacias especializadas de São Paulo durante 15 meses, entre 2012 e 2013, e, entre muitas outras informações, pode perceber uma insatisfação generalizada dos profissionais que atuavam nas delegacias.

“Em parte considerável dos casos, a alocação na DDM fora encarada como uma punição – devido a atritos internos ou condenações por práticas problemáticas – vinda de cargos superiores. ‘Eu estava em um distrito comum, lá na Zona Sul, um lugar horrível, e um dia recebi essa ligação, sem mais nem menos, dizendo que eu tinha que me apresentar no dia seguinte. Fiquei indignada! Nunca quis Delegacia da Mulher’, explicou uma delegada”, afirma na tese.

Questão de escolha

Enquanto, para alguns, a delegacia da mulher parece uma punição, para a delegada Laura de Castro Teixeira, a atuação na 1a DEAM de Goiânia foi um refúgio. Ela trabalhava na delegacia de Trindade (cidade próxima a Goiânia) quando tirou licença para fazer a cirurgia de transgenitalização em 2013. Após o todo o processo, ao voltar para a corporação pediu para ser realocada para a Delegacia da Mulher.

“Tinha acabado de fazer a cirurgia de mudança de sexo, então, eu pedi para vir para cá, porque eu não queria tanta exposição. Mas, com o tempo, eu percebi que eu gosto muito do trabalho na Delegacia da Mulher”, conta.

“Aqui você atende de tudo, você tem um contato muito grande com as vítimas e eu gosto muito disso de ouvir e conversar com as pessoas”.

Apesar de reconhecer que a polícia é uma instituição bastante machista, Laura conta que não sofreu preconceito na corporação. De maneira geral, os colegas a trataram bem e respeitaram, chamando de doutora antes mesmo que conseguisse a alteração de seus documentos.

Os desafios de trabalhar na delegacia da mulher

Laura, Samira e outras delegadas concordam em um ponto: o trabalho na delegacia da mulher pode ser bastante frustrante. “Sabe o que acontece? Nós fazemos o registro de ocorrência, nós pedidos a medida protetiva em 48 horas. A lei diz que o juiz teria 48 horas para responder, mas o juiz para responder, sobrecarregado, está levando em média dois ou três meses. Assim, nós nos frustramos novamente, porque não conseguimos responder e proteger essa mulher”, explica a coordenadora das DEAMS do Rio de Janeiro, Márcia Noéli. Por isso, a maior parte dos delegados, como ela, apóiam o projeto de lei 07/2016, que permitiria que as medidas protetivas fossem concedidas na própria delegacia.

Essa sensação de frustração, de não ver o resultado do trabalho, é uma das maiores queixas de quem trabalha na defesa da mulher.

“A pior parte do trabalho “são as mulheres que desistem da denúncia. A gente faz o flagrante, abre o boletim, mas elas não representam. É muito difícil uma mulher querer colocar seu marido, o pai dos filhos na cadeia”, desabafa o policial Thiago Tonolli.

Outro problema enfrentado nas Delegacias da Mulher – na verdade, em toda a Polícia Civil – é a questão da falta de verba e pessoal. Os policiais se vêem sobrecarregados com o trabalho, porque além de colher depoimentos, precisam fazer todas as demais etapas de burocracia e investigação. “Na prática, nosso trabalho é muito mais burocrático, é preencher formulário”, reclama o escrivão Marcelino de Paula Lopes, da segunda DEAM de Goiânia, no bairro Curitiba II.

Em sua tese de mestrado, Beatriz Accioly também destaca a questão da constante realocação dos funcionários, que são transferidos para novas delegacias, muitas vezes, sem aviso, gerando um ambiente de instabilidade e insatisfação. Outro fator de incômodo são as mudanças políticas.

“Intempéries políticas significavam novos ocupantes em cargos de comando, o que implicava em mudanças de estrutura interna e novas normas e organizações de trabalho”, explica

Quando a delegacia é uma nova violência

Polícia Civil de Minas Gerais estava em greve por melhores condições de trabalho e melhorias salariais, em junho. Na Delegacia da Mulher, vítimas de violência chegavam a esperar 10 horas para prestar queixa.

Dez da manhã, Delegacia da Mulher de Belo Horizonte, no centro da cidade. Na parede, cartazes anunciam uma greve da polícia civil por melhores condições de trabalho. Nas cadeiras da recepção, cinco mulheres aguardam sentadas: uma senhora negra, com sua filha de vinte e poucos anos; um casal, também de negras, e uma moça morena, com o olho roxo e um corte na bochecha. Na mesa do atendimento, ninguém. Estão ali há mais de uma hora e ainda não foram atendidas. Em alguns minutos, um homem mal humorado aparece e começa a atendê-las. Anota os nomes, RGs e o porquê de estarem ali. Pede para que aguardem.

Essa espera significará pelo menos três horas até a primeira conversa com o escrivão e mais outras horas até falar com a delegada. A moça com o olho roxo só vai sair dali depois das sete da noite. Precisará encontrar alguém para buscar o filho na escola por ela, porque está decidida a fazer o B.O. contra o ex-marido que a agrediu na véspera.

Infelizmente, muitas outras mulheres que chegam depois dela não têm a mesma disponibilidade: uma senhora foi à delegacia no intervalo do almoço e precisa voltar para o trabalho; outra está com remédios que precisam ser guardados na geladeira e, se esperar muitas horas, eles vão estragar; outra não tem quem fique com o filho.

Denunciar a violência doméstica e pedir uma medida protetiva parece ser algo que somente as mais pacientes, com disponibilidade de tempo, patrões compreensivos e dispostas a passar dez horas esperando, conseguem.

Mas não é só a demora que recebe as mulheres que procuram ajuda nas delegacias da mulher, não. Descaso, ironia, grosseria e desrespeito são também frequentes no atendimento dessas que deveriam ser as delegacias acolhedoras para as mulheres. Existe ainda a questão de que muitas delas funcionam apenas em horário comercial e não se conectam com o restante da rede de atendimento.

A revitimização no atendimento

Durante esta reportagem, realizamos uma pesquisa com 99 mulheres de diferentes regiões do país. 70% delas responderam que não se sentiram acolhidas nas delegacias especializadas e que suas denúncias não foram levadas a sério. Apesar de ser uma pesquisa informal, ela demonstra uma questão ainda muito importante quando se fala dessas delegacias: o atendimento. O problema não é novo, já em 2012 foi realizada uma CPMI da Violência contra a Mulher que visitou as delegacias de todos os estados e constatou o mesmo.

Como explica a promotora de justiça e coordenadora do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Ministério Público de São Paulo, Silvia Chakian, “não adianta apenas conscientizar a mulher em situação de violência a romper o silêncio, buscar ajuda, se não há um atendimento preparado para recebê-la”.

“Essa primeira resposta pode ser determinante para essa mulher nunca mais buscar ajuda”, completa.

Foi o que aconteceu com Camila Caringe, 29. Havia três anos, ela estava em um relacionamento abusivo cujo grau de violência foi aumentando com o passar do tempo – as ameaças e ofensas foram virando puxões de cabelos e empurrões. Até que, em 2014, a situação chegou ao limite com agressões graves, como chutes, socos ou pancadas na cabeça e ela decidiu se separar e procurar a delegacia da mulher, em São Paulo. Ouviu:

– Você já está separada, pra que fazer B.O.? Conversa com ele, vai ficar tudo bem.

Ela saiu envergonhada de lá, sem fazer a denúncia. Sete dias depois, por necessidade, ela precisou voltar para a casa do marido e a situação de agressão voltou. Ela ligou para seu pai pedindo ajuda e, quando percebeu isso, o ex marido começou a chutá-la, deslocando três dedos da sua mão direita. Mesmo assim, ela não voltou à delegacia, por vergonha.

Somente 10 meses depois, quando as ameaças de morte começaram a ficar frequentes e assustadoras demais, e já munida do conhecimento de que tinha direito a uma medida protetiva, é que ela foi à DEAM outra vez. O tratamento, mais uma vez, foi ruim. “Mas eu exigi que fosse atendida, que o boletim fosse feito e a medida solicitada”, conta ela. E 20 dias depois ela recebeu a medida que proibiu o ex de se aproximar em 300 metros dela.

Mesmo com isso, um ano e meio depois, o inquérito policial segue arquivado e o processo ainda não foi aberto.

Quando voltou à delegacia para exigir a medida protetiva, Camila foi novamente desestimulada a denunciar. Ela transformou sua experiência em quadrinhos e hoje conta a sua história e de outras mulheres no projeto Versa Maria.

A origem do problema do mau atendimento, segundo Silvia Chakian, está na falta de treinamento dos policiais que atuam nas delegacias da mulher. Nenhum estado do país possui um curso específico de gênero e preparo para este trabalho, apenas uma disciplina sobre direitos humanos dentro das próprias academias de polícia. Eventualmente, governos dos estados, órgãos públicos ou o governo federal oferecem cursos para os policiais, mas um treinamento sistematizado ainda não existe.

Sem esse preparo, os policiais reproduzem no trabalho preconceitos e atitudes com as quais convivem no dia a dia. “Eu vejo isso como um reflexo da própria visão machista da sociedade”, diz a delegada Laura de Castro Teixeira, da primeira DEAM de Goiânia.

Entre os comportamentos problemáticos do atendimento mais mencionados entre as entrevistadas estão a culpabilização da vítima, que ocorre quando os policiais dão a entender que a violência aconteceu por culpa de alguma atitude da mulher, como a sua roupa ou não ter terminado com o agressor antes; a tentativa de desestimular a denúncias, diminuindo a importância do ocorrido ou ressaltando as consequências ruins de levar a queixa adiante; e a descrença na palavra da mulher, que surge através de questionamentos excessivos, dúvidas e até descaso com o que é dito.

Entre as orientações para o atendimento da norma técnica para as delegacias da mulher de 2010 consta o atendimento humanizado, sem preconceito ou discriminação, levando sempre em conta a palavra da mulher.

Além da falta de treinamento em gênero, falta aos profissionais também um preparo específico para lidar com as questões étnicas e raciais, o que torna a revitimização de mulheres negras e indígenas ainda maior.

A CPMI da violência doméstica relata, por exemplo, que em Manaus, Belém, Roraima e Mato Grosso do Sul a ausência de tradutor faz com que mulheres indígenas que não falam português tenham dificuldade para registrar suas queixas.

Sem conexão com a rede de atendimento

Uma outra questão problemática destacada pela CPMI de 2012 e notada pela reportagem foi que as delegacias especializadas falham bastante em sua função de encaminhar a mulher para atendimento legal, psicológico e médico, abrigos e outros tipos de centros de acolhimento para vítimas de violência. 67% das mulheres ouvidas pela reportagem afirmam não ter sido encaminhadas para outros serviços.

Isso se deve à falta de comunicação entre a rede, quando ela existe, e também à localização das delegacias, longe dos demais serviço.

A localização, inclusive, é um outro problema das DEAMS que, na maioria dos casos, ficam em regiões centrais ou mais nobres das cidades, longe das áreas mais periféricas, onde há maior concentração populacional e maior incidência de violência. Em Brasília, por exemplo, a delegacia fica no Plano Piloto, o que faz com que as mulheres das Cidades Satélite precisem de um grande deslocamento para fazer a denúncia.

Falta pessoal e estrutura

Todas as delegadas e policiais questionados pela reportagem acreditam que o principal problema das delegacias da mulher no país é a falta de estrutura e de pessoal para atender, o que explicaria também as denúncias de mal atendimento. “Nós temos um problema de efetivo. As delegacias contam com efetivo emprestado de outras estações, porque não temos pessoal suficiente”, conta a delegada Natália Tenório, que atua no plantão especializado da mulher em Vitória, ES. Essa delegacia atua com os flagrantes de violência contra a mulher e é a única que funciona aos finais de semana e durante a noite na cidade.

Para as denúncias sem flagrante, as mulheres devem procurar a DEAM da cidade, onde a delegada Arminda Rosa atua com três investigadoras e dois escrivães (um homem e uma mulher). “Falta pessoal para atender toda a demanda da cidade e também espaço”, diz ela. A delegacia fica em uma casa pequena no bairro de Santa Luiza, que conta com uma recepção onde também são colhidos depoimentos, duas salas dos escrivães, a sala da delegada que é dividida com a pessoa que cuida do administrativo, um banheiro que também serve de arquivo, com pastas empilhadas em uma das paredes, e uma sala da assistente social improvisada no corredor que leva para a pequena cozinha.

O problema não é exclusivo do Espírito Santo. Em várias cidades ao redor do país, as Delegacias da Mulher funcionam em prédios de delegacias comuns. Maria* contou que, na cidade de São Paulo, quando procurou a segunda Delegacia da Mulher Sul, nem sequer conseguiu ser atendida: “Como a delegacia fica nos fundos ou no primeiro andar de uma DP normal, quando cheguei havia investigadores da DP normal que não me deixaram subir. Perguntaram meu caso e disseram que não podia ir lá, que não era caso de Delegacia da Mulher”.

“Eu estava sendo perseguida por um homem e tive de ouvir deles que eram só ‘elogios’. O delegado quis ouvir minha história e tentou a todo custo me impedir de fazer o BO”, acrescenta.

Mesmo quando a delegacia fica em um prédio com boa estrutura, como é o caso de Goiânia, Belo Horizonte ou algumas das unidades de São Paulo, a questão da falta de pessoal ainda permanece. Uma delegada, que não quis se identificar, contou que, em São Paulo, o plantão 24 horas ficou fechado por anos porque não havia efetivo policial para cobrir os turnos. O plantão foi retomado em setembro de 2016 devido à pressão popular e funciona apenas da unidade da Sé.

A maior parte das delegacias só funciona de dia

Delegacias da mulher funcionando 24 horas, como agora acontece na primeira Delegacia da Mulher de São Paulo, são exceção. O caso da capital paulista, inclusive, é bem parecido com o de outros estados: uma delegacia fica aberta aos finais de semana e durante a noite para receber toda a demanda das capitais e região metropolitana, e no interior o horário é apenas comercial. É assim em Goiás, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo e Acre. Somente no Rio de Janeiro todas as DEAMs funcionam 24 horas. No Mato Grosso, a polícia civil nos informou que “a Polícia Civil, por questão de efetivo reduzido, não tem condições de manter atendimento 24 horas nessas unidades”.

Quando não há atendimento nas delegacias especializadas, as mulheres devem buscar as delegacias comuns e seus casos, posteriormente, são encaminhados às especializadas. No entanto, nas comuns o atendimento a mulheres é ainda mais problemático.

Para Maria da Penha, a farmacêutica cuja luta deu nome à lei de combate à violência doméstica, isso é uma falha muito grande.

“Na maioria das nossas cidades as delegacias da mulher não funcionam no período da noite nem nos finais de semana. E esse período é justo quando a violência é maior”, explica.

“Porque o companheiro está em casa, ali em constante atrito com a mulher, além de ter ainda a bebida, que muitos consomem no fim de semana e se tornam mais violentos por causa disso”.

O tipo de atendimento e a sobrecarga

Em julho, ganhou visibilidade o caso da baiana Aiace Félix. Ela foi agredida por um taxista após exigir respeito quando ele assediou sua irmã e foi à delegacia da mulher fazer denúncia. “Ao chegar por lá, fomos atendidas por uma senhora super mal humorada e sem muito trato pra acolher uma vítima de agressão. Ela nos informou que lá só poderiam ser acolhidos casos em que a vítima tivesse alguma relação com seu agressor”.

“Então, quer dizer: eu sou mulher, sofro uma agressão por ser mulher, mas não posso ser acolhida na delegacia da mulher?!!”, postou a cantora em seu Facebook.

O caso ganhou visibilidade e a polícia civil da Bahia informou que houve um erro da atendente. No entanto, a verdade é que em muitos estados o atendimento nas delegacias da mulher é sim focado somente na Lei Maria da Penha, ou seja, casos em que haja alguma relação afetiva entre a vítima e o agressor.

Em São Paulo não é assim, mas segundo  Rosemary Correa, a primeira delegada da mulher do país e atual presidenta do Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo, deveria ser. “A delegacia está com muitas atribuições. Deveria se focar especificamente na lei Maria da Penha, para que não perdesse o foco para o qual a delegacia da mulher foi criada, que é atender a violência física e sexual”.

A delegada Samira Fares Negrini concorda que a delegacia da mulher deveria focar no atendimento de casos de violência de gênero pois, muitas vezes, elas se vêem sobrecarregadas, atendendo denúncias de brigas de vizinhos ou roubos – casos que não têm relação com a violência contra a mulher. No entanto, ela acredita que, para além do vínculo com o agressor, o atendimento devia se estender a todos os casos em que a violência tenha uma relação como fato de a vítima ser mulher – o que significa que Aiace seria atendida.

Existe solução?

Os problemas das delegacias especializadas são muitos e não são simples e como resolvê-los é um debate complexo. A CPMI da violência contra a mulher sugere diversas ações, como criar Coordenadorias da Mulher na Polícia Civil, para uniformizar e monitorar as delegacias. Outras ações sugeridas são: o aumento do orçamento destinado ao enfrentamento à violência contra a mulher, a criação de um Sistema Nacional de Informação sobre a Violência Contra a Mulher, a exigência dos governos para que as polícias civis concluam as investigações no prazo e adotem, ao menos nas capitas, o plantão 24 horas das delegacias.

No entanto, poucas delas foram acatadas nos quatro anos que se passaram desde o relatório. O principal movimento que existe nesse sentido é o Projeto de Lei 07/2016, que altera alguns pontos da lei Maria da Penha. Ele determina, por exemplo, que o agressor nunca poderá ficar no mesmo espaço que a vítima na delegacia e que deve-se evitar a revitimização da mulher com sucessivos interrogatórios.

O projeto também prevê que os governos dos estados devem dar preferência à criação de Delegacias da Mulher. No entanto, o projeto tem sido bastante questionado por ter sido feito sem participação da sociedade e porque passaria a permitir que delegados e delegadas pudessem emitir (e negar) medidas protetivas, teoricamente acelerando a proteção da mulher.

Por que a palavra da mulher não tem valor nas delegacias?

Mulher espera atendimento em delegacia. Foto: Helena Bertho

A festa da sexta-feira à noite havia sido ótima para Elaine*. Ela bebeu, dançou, se divertiu. No final da noite, decidiu dormir na casa da colega do trabalho, mais próxima que a sua. Somente no dia seguinte foi que percebeu: o marido da amiga a havia estuprado durante a noite, enquanto estava desacordada pelo efeito do álcool. Passou o final de semana em pânico e, na segunda-feira, procurou a Delegacia da Mulher da cidade. Lá, ouviu foi que não havia acontecido nada, que se tivesse acontecido, ela estaria machucada. No fim, ela desistiu da denúncia e foi embora, sem provas físicas, sua palavra não tinha valor algum para abrir um inquérito.

O que aconteceu com Elaine não é exceção mas, sim, uma das principais queixas das mulheres que procuram as Delegacias da Mulher: parte-se do pressuposto de que estão mentindo.

“Por que motivos uma mulher não pode ser digna de crédito quando ela procura uma delegacia e diz que foi violentada?”

“Por que essa desconfiança deliberada em relação à palavra da mulher? Como se ela procurasse a delegacia nesses casos com a intenção de prejudicar um inocente”, questiona Silvia Chakian promotora de justiça e coordenadora do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Ministério Público de São Paulo. Ela ressalta que a palavra deveria, sim, servir de argumento inicial para se dar início a uma investigação. “Eu trabalho há 17 anos com isso, nos últimos sete, exclusivamente no enfrentamento à violência contra a mulher. E eu te digo que a experiência demonstra de forma clara que o que ocorre é exatamente o oposto:

a mulher tende a minimizar os episódios de violência porque pra ela é um peso muito grande denunciar um parceiro ou ex-parceiro e não o contrário”.

Já para a delegada Laura de Castro Teixeira, da primeira DEAM de Goiânia, essas reclamações acontecem porque as mulheres não entendem o trabalho da polícia. “Acontecem casos de mulheres abrirem denúncia contra o marido para acelerar o processo de divórcio, por exemplo. Essas situações são raras, mas demonstram pra gente a necessidade de fazer uma investigação apurada. A grande maioria das situações são de boa fé, mas essas poucas que acontecem exigem da gente um cuidado maior, para evitar cometer injustiças e prejudicar um inocente”.

No entanto, vale ressaltar que o papel da polícia é investigar e não julgar. Aceitar que a denúncia pode ser verdadeira e investigá-la, para que, então, o Judiciário possa julgar o mérito. O excesso de zelo em verificar a coerência da história da mulher, na verdade, representa mais uma forma de violência, como explica a promotora Silvia: “O discurso da vitima de violencia sexual tende a ser entrecortado, até aparentemente incoerente, com lapsos de memória. Isso é muito comum, isso é próprio do pós-trauma. Mas, muitas vezes, esse agente público, que não tem essa capacitação sobre a perspectiva de gênero, tende a desacreditar, fazer questionamentos de forma exaustiva e revitimizar essas mulheres. É cobrado delas um excesso de coerência em detalhes, dificílimos de fornecer”.

“Por que motivos uma mulher não pode ser digna de crédito quando procura uma delegacia e diz que foi violentada?”, questiona a Promotora Silvia Chakian.

Para responsabilizar o autor de um crime, é exigido um conjunto robusto de provas, mas, em muitos casos de violência doméstica e sexual, essas provas não existem. Naturalmente, não se deve condenar inocentes, mas é importante entender que se trata de um tipo de crime que tem como característica acontecer na clandestinidade, entre quatro paredes, longe do olhar de testemunhas. E as evidências, nesses casos, são de outro tipo.

A importância das provas não materiais

Um outro fator complicador é o perfil do homem que comete a violência: é um homem comum, totalmente fora do estereótipo do criminoso, muitas vezes calmo e mais coerente que a própria mulher que prestou a queixa. “Ele é um bom moço, é o colega ao lado. Mas dentro de casa, é um agressor”, diz a promotora.

Para ela, a solução seria contar com uma equipe multidisciplinar nas delegacias, não só para atendimento, mas também para investigação. Existem indicadores de violência que são psicológicos, emocionais, que podem ser verificados por psicólogos preparados para tanto e que, sim, devem servir de prova na Justiça. Ela explica que, atualmente, é comum fazer uso desse tipo de prova em denúncias de abuso de menores que também têm a mesma questão da falta de provas materiais.

Atualmente, porém, somente Mato Grosso, Paraná e Espírito Santo contam com atendimento de assistente social ou psicóloga em algumas das delegacias especializadas, segundo os dados fornecidos pelas secretarias de segurança. Para além da investigação, a presença dessas equipes é de extrema importância para que as mulheres possam romper o ciclo da violência doméstica.

Dependência emocional e financeira são o principal motivo para que mulheres continuem presas a parceiros violentos. Portanto, oferecer apoio psicológico, para que recupere sua auto estima e superar os vínculos com o agressor, e assistência social, para que possa se inserir no mercado de trabalho e encontrar alternativas para sustento dos filhos e de moradia, são essenciais para que elas saiam da situação de violência.

O que a delegacia da mulher pode – e deve – fazer por você (e também o que não deve)

As Delegacias da Mulher nem sempre investigam todos os casos de crimes cometidos contra mulheres – Foto: Helena Bertho

“Eu não sabia muito bem como funcionava”, foi uma das frases mais ouvidas nos mais de 100 depoimentos de mulheres sobre as delegacias da mulher que colhemos. E uma boa parte das reclamações se relacionavam a ações que fazem parte do protocolo policial. Muitas mulheres que procuram a delegacia da mulher não sabem o que esperar do atendimento ali. No momento de crise, após sofrer algum tipo de violência, é comum buscar ajuda, mas sem saber exatamente que tipo de ajuda se quer e, também, quais são os procedimentos corretos com os quais se deve ser atendida.

Por isso, trazemos aqui um resumo do que exatamente faz a Delegacia da Mulher, como ela deve te atender e o que você pode esperar deste atendimento. Assim você pode exigir seus direitos sem medo!

Porque denunciar é o primeiro passo para sair da violência doméstica.

Quem pode ser atendida na Delegacia da Mulher?

Mulheres de maneira geral. Pela lei Maria da Penha, qualquer mulher que sofra violência doméstica – definição abaixo – deve ser atendida pela Delegacia da Mulher. Como a lei não aborda especificamente a questão das mulheres trans, o atendimento fica muito sujeito à interpretação dos policiais na unidade, mas existe uma orientação do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais (CNPG), do Ministério Público, para que se aplique a Lei Maria da Penha judicialmente em casos de agressões a mulheres transexuais e travestis,independentemente de cirurgia, alteração do nome ou sexo no documento civil – apesar de não existir a mesma orientação para a polícia.

Quando procurar a Delegacia da Mulher?

Apesar do nome, a Delegacia da Mulher nem sempre atende qualquer crime que tenha ocorrido contra uma mulher. Em alguns estados, como São Paulo, de fato, investigam toda violação de direitos das mulheres, mas, em outros, as delegacias especializadas focam apenas nos crimes previstos na lei Maria da Penha, como violência doméstica, além de casos de crimes contra a dignidade sexual e feminicídio.

Mas exatamente o que é a violência doméstica? Segundo a Lei Maria da Penha, trata-se de qualquer tipo de ação ou omissão que cause dano físico, psicológico, moral, patrimonial ou sexual à mulher dentro do ambiente doméstico, familiar ou em uma relação íntima de afeto. Traduzindo, trata-se de violência doméstica quando uma mulher é agredida por qualquer pessoa (homem ou mulher – ou seja, se você for lésbica e for agredida por sua companheira, também vale) que

  • more com ela
  • seja da família (ou seja, pai, mãe, filha, filho, irmãos também podem praticar violência doméstica)
  • com quem ela tenha uma relação íntima de afeto (namorado, amigo, colega de trabalho, etc).

E essa agressão não precisa ser necessariamente física. Também são considerados violência doméstica:

  • ameaças.
  • constrangimento, humilhação, vigilância, perseguição, chantagem ou qualquer outro tipo de atitude que cause dano emocional e diminuição de auto-estima ou que vise controlar suas ações.
  • todo tipo de conduta que obrigue a mulher a presenciar, manter ou participar de relação sexual sem sua vontade, que impeça de usar método contraceptivo, que force a gravidez ou ao aborto ou à prostituição contra sua vontade.
  • reter, pegar ou destruir qualquer bem ou dinheiro da mulher,
  • calúnia, difamação ou injúria.

Já os crimes contra a dignidade sexual são todos os tipos de agressão sexual mesmo que praticados por um completo desconhecido na rua.

E isso vale para beijo a força, passada de mão e qualquer outro tipo de abuso.

Esse tipo de denúncia toda delegacia da mulher no país deve receber. Infelizmente, os estados não informam exatamente qual o tipo de atendimento complementar cada delegacia presta.

Por isso, por mais que pareça um absurdo, pode sim acontecer de uma Delegacia da Mulher recusar atendimento a uma vítima de agressão por um desconhecido.

O que eu preciso levar para fazer a denúncia?

Seus documentos, o máximo de informações possíveis sobre a pessoa que você vai denunciar, como nome, número da identidade e endereço (quando possível) e o máximo de provas e testemunhas que tiver.

Se você for sozinha à delegacia, os policiais vão abrir o boletim, colher seu depoimento e depois chamar as testemunhas para depor. No entanto, se você já levar provas de que a violência aconteceu ou testemunhas dela, pode acelerar o processo. Inclusive para que um juiz conceda uma medida protetiva para você.

E o que vai acontecer na delegacia?

Ao chegar na delegacia, um atendente vai ser a primeira pessoa a falar com você. Ela ou ele vai ouvir um resumo do seu caso, anotar seu nome e pedir para que espere. A espera pode demorar, mas em algum momento você será chamada para dar seu depoimento a um(a) escrivã(o), que vai abrir já o seu boletim de ocorrência. Após falar com a escrivã, os passos seguintes podem variar, mas em geral pode haver mais um pouco de espera e então uma conversa com a(o) delegada(o).

Se você tiver sofrido agressão física, será encaminhada para o exame de corpo de delito. Algumas delegacias possuem médicos no próprio local e você fará o exame ali mesmo. Quando não houver um especialista na delegacia, você será então encaminhada para um hospital, onde será feito o exame.

Durante o exame, você tem direito de saber exatamente tudo o que está sendo feito com seu corpo e pode negar qualquer tipo de toque ou exame que quiser.

Caso você precise de abrigo, a delegacia deve providenciar transporte e escolta para você retirar suas coisas da sua casa e acompanhar até o abrigo.

Além disso, algumas delegacias contam com assistente social e/ou psicóloga que pode conversar com você para dar outras orientações sobre os próximos passos e acompanhamentos.

Dentro desses procedimentos, você pode exigir:

  • ser mantida em local separado do(a) seu(sua) agressor(a), caso ele tenha sido levado para a delegacia,
  • dar seu depoimento em um local separado, sem que outras pessoas ouçam o que você diz,
  •  ser respeitada e ouvida por todos os profissionais da delegacia sem julgamento ou culpabilização,
  • que nenhum policial tente fazer você desistir do boletim de ocorrência alegando que você se comportou mal ou “que não vai dar em nada” ou ainda que “é melhor conversar com o(a) agressor(a)”,
  • que o seu exame de corpo delito seja feito em local isolado, sem nenhum policial além do médico legista presente,
  • no caso de ameaça de vazamento de fotos ou vídeos íntimos, saiba que as provas são as mensagens de ameaça e não as fotos e vídeos e você não é obrigada a entregar nada que te constranja para dar continuidade à denúncia.

No entanto, é importante saber de algumas coisas que são parte do trabalho da polícia e outras que a polícia não pode fazer:

  • o trabalho da polícia é investigar e colher provas, então escrivã(o) e delegada(o) vão precisar fazer muitas perguntas, esmiuçar os pontos confusos da sua história e exigir as provas,
  • se não houve flagrante (ou seja, se um policial não foi chamado até o local onde a violência aconteceu), a polícia não pode prender o(a) agressor(a) na hora, por mais que você queira,
  • em denúncias que não sejam de agressão física, o policial deve perguntar se você deseja fazer a representação, o que significa dar andamento com o processo investigativo e judiciário. A representação pode ser feita na hora da denúncia ou depois, mas sem ela o processo não segue. (Isso é muito importante!)
  • já em casos em que houve violência física, não é preciso fazer representação. Ou seja: se houve violência doméstica e você se machucou, mesmo que desista da denúncia, o processo vai seguir,
  • caso você solicite medida protetiva, ela não vai ser dada ali na hora, pois quem emite essa medida é um juiz,
  • nenhum policial pode ligar para “dar um susto” no(a) agressor(a) ou mandar ele parar de ameaçar.

O que acontece depois de ir à delegacia?

Os passos da sua denúncia serão os seguintes:

  1. Você faz a denúncia.
  2. Entrega provas e, quando necessário, faz o exame de corpo de delito.
  3. Se pediu medida protetiva, em até 48 horas o pedido será enviado a um juiz que vai analisar e aprovar ou negar. As medidas protetivas de urgência são julgadas em até 48 horas, as outras podem levar mais tempo para sair.
  4. Se achar que você ou seus filhos correm riscos, você pode solicitar ir para uma casa abrigo, onde ficará escondida.
  5. As testemunhas e o acusado são chamadas à delegacia para contar suas versões do ocorrido.
  6. A polícia investiga o caso e coleta provas.
  7. Com provas e depoimentos, a polícia entrega o caso para a Justiça, preferencialmente um juizado especial da mulher, para que seja julgado. O(a) juiz(a) vai então decidir se o(a) agressor(a) é culpado ou não e determinar a pena, que pode variar, dentro das possibilidades do Código Penal.

As medidas protetivas

São mecanismos criados para proteger a mulher que sofreu violência doméstica caso ela se sinta ameaçada. Ela deve ser pedida na delegacia e pode ser de dois tipos. O primeiro é o tipo de medidas que não envolvem o(a) agressor(a), são quelas que podem ser tomadas na hora pra proteger a mulher como ser levada a um abrigo ou ter acompanhamento policial para retirar suas coisas de casa.

O segundo tipo de medidas protetivas envolve algum tipo de restrição de liberdade do homem e por isso é um(a) juiz(a) quem decide. Ela pode afastar o acusado da casa, proibi-lo de chegar perto da mulher ou dos filhos, proibi-lo de ir a locais que ela frequente, como seu trabalho, tirar provisoriamente a guarda dos filhos, entre outras coisas. A delegada deve enviar o pedido para o justiça, que vai negar ou deferir (aprovar).

Após a medida protetiva ser emitida pela Justiça, um oficial irá até o acusado entregar a notificação e só a partir de então ela passa a valer. Com ela valendo, qualquer descumprimento deve ser denunciando na hora e o acusado que descumprir pode ser preso em flagrante.

Mapa colaborativo das delegacias da mulher no Brasil

Todas as delegacias da mulher presentes no Brasil, conforme informado pelos governos estaduais, podem ser encontradas no mapa . Se você sofreu violência e busca ajuda, ele conta também com outros serviços de acolhimento à mulher. O levantamento das delegacias foi feito pela Revista AzMina, em 2016, e cedido ao Mapa do Acolhimento

Caso você saiba que uma das delegacias não existe, informe isso, para que possamos atualizar e criar um mapa real das delegacias da mulher no país. Se a sua cidade tem uma delegacia que não está no mapa, mande um e-mail para mapeamento@mapadoacolhimento.org

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