

–Questões de natureza íntima, minhas ou de quem sejam, devem se manter no âmbito privado a que pertencem. Foi isso que disse Fernando Henrique Cardoso, nosso ex-presidente, ao ser questionado se, de fato, pagou por dois abortos de sua ex-namorada Mirian Dutra Schmidt. Eita homem que sabe das coisas: interromper ou não uma gravidez é uma coisa íntima, uma decisão privada da mulher e, no máximo, do companheiro que decidir apoiá-la. O que esqueceram de avisar ao ex-presidente, no entanto, é que essa obviedade só é válida pra gente rica como ele, porque a brasileira média continua vivendo uma realidade de aborto ilegal e, se não morre na clínica clandestina, corre o risco de ir parar em cana.
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Está certo o médico Dráuzio Varella que, numa das melhores entrevistas já feitas sobre o tema do aborto no Brasil, desmascarou a verdade: “Aborto já é livre no Brasil. Proibir é punir quem não tem dinheiro”. Vejam só, a entrevista dada por Mirian ao jornal Folha de S. Paulo ontem comprova perfeitamente o que vinha dizendo o médico. Enquanto ex-presidentes e homens e mulheres de classe média podem evitar gestações indesejadas sem botar vidas em risco, a mulher pobre se vira, sozinha, na ilegalidade. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), uma brasileira morre a cada dois dias por conta de procedimentos mal feitos e um milhão de abortos clandestinos são realizados no país todos os anos.
“Durante os seis anos com ele (FHC), fiquei grávida outras duas vezes, e eu abortei”, declarou Mirian, dando um tapa na cara da sociedade. “Ele pagou. Por dois abortos.”
Veja só o tamanho da hipocrisia: durante o governo de FHC, enquanto ele pagaria abortos seguros para sua amante, milhares e milhares de mulheres morriam ou eram presas por acharem que tem o direito de decidir o que fazer sobre os próprios corpos. Fica no ar a pergunta: e Lula, já pagou por abortos? (sua ex-namorada diz que sim) E Michel Temer? E Dilma Rousseff? E aqueles que fazem as leis? E Eduardo Cunha e Jair Bolsonaro? Até onde será que chega essa farsa?
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Acho importante dizer aqui que não sou “pró-aborto”. Ninguém deseja que abortos aconteçam e vai sair por aí pregando que mulheres não devem ser mães se é o que elas desejam. O que sou a favor é da escolha. O aborto é uma coisa que pode ser traumática e pela qual ninguém quer passar, mas outra coisa traumática é ser mãe sem estar preparada para tal. E esse último trauma dura pro resto da vida e contagia uma nova pessoa.
Entendo os argumentos de quem “defende a vida” – e jamais apoiaria um aborto depois que o feto já têm cérebro e sistema nervoso, ou seja, já é um pequeno ser humano. Porém, concordo com Dráuzio, mais uma vez, quando ele afirma: os critérios para definir o começo da vida deveriam ser os mesmos usados para definir o fim da vida. E lembremos o exemplo dado por ele de uma mulher com morte cerebral:
“Ela pode, por lei, ter fígado, coração e rins retirados para doação, porque seu sistema nervoso central não está mais funcionando. O sistema nervoso central é o que determina a vida. Mas até o 3º trimestre de gravidez, não há nenhuma possibilidade de arranjo do sistema nervoso que se possa qualificar como atividade cerebral em qualquer nível, a não ser neurônios tentando se conectar.”
Ou seja: com certeza, nos primeiros meses de gravidez, não há argumento científico válido e coerente que defenda a existência de vida. Resta apenas o corpo da mulher. E sobre o próprio corpo, a mulher deveria ter soberania absoluta – seja ela amante de presidente ou não. Chega de hipocrisia e elitismo. Vamos falar sério e legalizar o aborto pra todas? Isso, sim, meus caros amigos ‘pró-vida’, é proteger vidas reais.