A feminização da pobreza é uma ideia que remonta à década de 1970. “É um aumento na diferença de níveis de pobreza entre as mulheres e os homens, ou por um lado, entre os domicílios chefiados por mulheres, e, por outro lado, aqueles chefiados por homens ou casais”, conforme explicaram os pesquisadores Marcelo Medeiros e Joana Costa no artigo “O que entendemos por feminização da pobreza”.
Santos abriga um exemplo vivo desse conceito. Geralmente, a cidade é lembrada pelo maior jardim de orla do mundo e o time de futebol de Pelé. Porém, amarga um outro recorde, nada positivo: possui a maior favela de palafitas do Brasil, localizada na zona noroeste da cidade, no dique da Vila Gilda.
Palafitas são casas construídas em cima das águas, equilibradas sobre plataformas e sustentadas por estacas ou troncos e nelas moram, em condições subumanas, por volta de 20 mil pessoas.
Muitas dessas moradias são chefiadas por mulheres. Nós entrevistamos algumas das que vivem no Caminho da União, no bairro do Jardim São Manoel. “Somos invisíveis” foi a expressão mais dita pelas entrevistadas.
Para além disso, as moradoras reclamam da negligência do poder público em relação aos perigos diários enfrentados, como tábuas soltas e escorregadias que provocam acidentes sérios. Várias mães relataram que seus filhos já caíram na maré, alguns se machucando gravemente. Elas também temem chuvas e tempestades por conta de inundações e perdas de telhas das casas.
Só a união dos moradores e o apoio coletivo as salvam. No dia em que a reportagem esteve lá, um homem arrumava um cano a pedido de uma vizinha e as mulheres desempregadas ou donas de casa ajudavam a olhar os filhos das que trabalhavam.
Era o poder comunitário como resistência ao descaso.
Severina, mãe de 4 filhos, mora há um ano nas palafitas. Do sertão de Pernambuco, viveu em São Paulo por mais de 30 anos e, devido à crise, veio buscar melhores condições de vida em Santos. “Mas não encontrei. Aqui é muito pior”, desabafa.
Desempregada, ela cuida do neto Richard, de 13 anos, e é sustentada pelo filho. Reclama sobre a falta de professores na escola onde ele estuda e diz que é horrível viver nas palafitas. Ela paga 300 reais de aluguel, mas deve três meses porque o filho está desempregado. Tímida, de pouca conversa, quando perguntada sobre quais são os seus sonhos, responde sem titubear: “Quero voltar para Nordeste”.
A situação de Izabel Nascimento é ainda mais delicada. Pernambucana, mãe de três filhas, ela vive em Santos há 17 anos. Abandonada pelo marido, ela mora na casa da filha mais velha, que as sustenta, junto com a mais nova e a neta. Para agravar a situação, devido à diabetes, perdeu a visão há um ano. As tábuas soltas e escorregadias fazem com que tenha medo de cair na maré e, desde então, ela mal sai de casa. A condição também a impossibilitou de trabalhar na barraca na qual vendia alimentos, aumentando a penúria dessa família de mulheres.
Izabel usa um medicamento que custa 120 reais por caixa e não está disponível no posto de saúde da cidade. Vive uma realidade de isolamento por conta do descaso institucional. Mesmo diante da precariedade, ela reivindica sua humanidade ao sonhar com uma vida melhor, ao mesmo tempo em que diz não ter vergonha de morar onde mora.
“Quem deveria ter vergonha são os governantes, a gente mora aqui porque precisa, somos pessoas honestas, com caráter. Só queremos ser vistos”.
Seu maior sonho, além de ter uma casa melhor para as filhas, é conseguir o benefício do INSS, a aposentadoria por invalidez, mas diz que, por amor, aguenta todos os sacrifícios.
Márcia da Silva Correia é mãe de Roberta, de 15 anos, Alice, de 10, Vitória, de 8, e agora aguarda a Maitê. Assim como as outras mulheres entrevistadas, ela tem medo de tempestades e enchentes. Certa vez, Vitória caiu na maré ao escorregar da passarela – algo comum na comunidade. “Foi tudo muito rápido, num descuido meu a menina caiu, quando fui perceber minha vizinha já estava com ela no colo, banhada de sangue porque havia batido a cabeça. Nesse dia, eu quase derrubei a ponte. Se não fosse pela minha vizinha, minha filha teria ficado lá embaixo”.
Márcia diz se sentir abandonada pelo poder público e estar cansada de promessas. Reclama do atendimento do posto de saúde e tem medo por não saber onde será o parto de sua filha.
A resiliência
Apesar das dificuldades, há resistência. O título desta série faz alusão à página “Vidas em Vigas” criada por Edmilson Almeida Duarte, o Didi, para denunciar a realidade precária dos moradores. Didi, que vive no bairro São Manoel desde que nasceu, utiliza o próprio aparelho celular para registrar o dia a dia da comunidade. “Mas não quero mostrar só a dureza, minha página também serve para mostrar que a gente existe, mostrar o outro lado de quem vive aqui. Que existem trabalhadores, pessoas honestas”.
Desde 2015, a Fundação Settaport, instituição ligada ao Sindicato dos Trabalhadores Portuários de Santos, mantém um projeto esportivo educacional na região. O projeto atende 140 alunos de 5 a 14 anos na modalidade futsal. A Fundação mantém mais outros cinco núcleos espalhados em áreas de vulnerabilidade social nas cidades de Santos e Guarujá.
Segundo Donald Veronico, gestor de projetos esportivos da Fundação, existe parceria com as escolas das regiões e os alunos só podem frequentar o projeto se tiverem frequência escolar. O principal diferencial da iniciativa é ser também aberta para meninas que treinam e formam times juntamente com os meninos.
“É possível ver a transformação de meninos e meninas que frequentam os projetos esportivos. Eles aumentam a frequência escolar e o desempenho”, diz Donald.
Segundo Francisco Nogueira, presidente da Fundação e vereador na cidade, a Fundação Settaport tem uma forte parceria com a Associação de Moradores do Jardim São Manoel. “Para atender a comunidade, montamos os núcleos esportivo e de inclusão digital e também já estamos oferecendo aulas de zumba”, conta.
“Temos tentado facilitar a construção de uma sede para a associação de moradores. O imóvel vai abrigar uma creche e salas para reuniões e eventos. Ali também serão desenvolvidas atividades para tirar as crianças da rua”, anuncia Nogueira.
Outro lado
Para saber o que o poder público tem feito a respeito das reclamações das moradoras, a reportagem procurou a assessoria de imprensa da prefeitura de Santos, que armou, por intermédio de nota:
“A Zona Noroeste foi uma das regiões mais beneficiadas pelo poder público municipal em investimentos de infraestrutura e atendimento social à população, desde 2013. A Prefeitura investiu na construção de policlínicas, equipamentos sociais e reforma de unidades de ensino municipal na região. Neste período, foram entregues 480 moradias e encontra-se em fase final a construção de outras 200 no Conjunto (Habitacional) Caneleira. Também estão em construção 205 unidades no São Manoel. A creche que atende o bairro São Manoel está, no momento, com sua capacidade máxima de lotação e, para as crianças que não conseguiram vaga nesta unidade específica, a Prefeitura fornece cartão transporte para que as crianças estudem em outras unidades ou entidades subvencionadas.”
As mulheres entrevistadas pela reportagem, porém, duvidam das promessas dos governantes e acham que as medidas tomadas até então não são suficientes. Beatriz Santos Bastos, que cansou de levar tombos com a filha com paralisia cerebral nos braços, diz não receber mais candidatos em sua casa. “Eu não tenho vergonha de morar aqui, sou honesta, mas tenho o direito a uma vida melhor”. Ainda nutre, entretanto, esperanças de que o conjunto habitacional lhe reserve esse direito.
Apesar da cidade de Santos já ter sido considerada a melhor cidade para se viver, segundo pesquisa da consultoria Delta & Finance/Economia, em 2016, a qualidade de vida não se estende a todo mundo: existe uma relação de desigualdade entre a orla e a região continental do município. E, como observou a reportagem, essa pobreza tem, principalmente, uma face feminina.