Este artigo foi escrito pela subprocuradora da República Ela Wiecko, com exclusividade para AzMina.
A Proposta de Emenda Constitucional 55 (popularmente conhecida como PEC do teto) agora é lei. Lei de natureza constitucional, ou seja: alterou em vários pontos a Constituição da República promulgada em 1988. Vai afetar a vida de toda a população brasileira, ao estabelecer um teto dos gastos públicos nos próximos 20 anos, sob a justificativa de que gastava-se mais do que é arrecadado em tributos. Mas, principalmente, impactará a vida das mulheres, tornando a desigualdade de gêneros ainda mais profunda.
Fica muito evidente pelos seus termos que o objetivo é restringir os gastos com remuneração de pessoal e com os investimentos em saúde e educação. Já foi anunciada a reforma da previdência, também no plano constitucional.
Tudo isso sugere a avaliação feita pelo governo de que gastos sociais, como saúde, educação e seguridade, atrapalham, senão inviabilizam, as contas públicas.
Uma mirada mais crítica sobre o que apregoam os defensores da Emenda, obriga-nos a questionar se todos os cidadãos e cidadãs brasileiros serão afetados da mesma forma e no mesmo grau e se os gastos sociais são realmente o vilão do desequilíbrio das contas públicas.
A experiência do confisco da poupança no governo Collor é exemplo: quem ganha salário mais elevado, quem tem imóveis, quem tem investimentos financeiros diversificados, consegue navegar na crise e, inclusive, uma vez superada, ficar em situação melhor do que a anterior em relação a quem depende de emprego precarizado ou aposentadoria de valor mínimo e não possui imóvel próprio.
Nessa perspectiva, pode-se antever que os grupos de renda per capita ou familiar de R$ 81 a R$1019, serão severamente afetados. Esses grupos vão de extremamente pobre a alta classe média, conforme classificação da Associação Brasileira de Empresas e Pesquisas (Abep). A classe alta será menos afetada e o segmento mais abonado dessa classe será afetado positivamente, pois passará a fornecer serviços privados de saúde, educação e previdência, áreas que serão objeto de menor investimento público. Sem falar na sempre desejada privatização dos estabelecimentos prisionais.
A classe alta terá ganhos com a retração do Estado nos investimentos sociais.
Teto para gastos públicos não é necessariamente ruim, desde que o remédio para o desequilíbrio orçamentário não seja apenas este. Se um dos problemas é a baixa arrecadação tributária, por que não se pensa em fazer os ricos pagarem mais impostos? Por que foram concedidas com o beneplácito do próprio Congresso Nacional tantas desonerações tributárias? O custo-benefício dos incentivos fiscais para projetos de desenvolvimento, no quais o chamariz da geração de empregos tem afastado requisitos socioambientais previstos em lei e até na Constituição, já foram devidamente avaliados?
Essas categorias de classes sociais ou grupos, utilizadas pelo governo ou pelo mercado, são aparentemente neutras.
Se fizermos a clássica pergunta de um método jurídico feminista “onde estão as mulheres?” veremos que as mulheres serão as “vítimas” preferenciais da Emenda Constitucional 55.
Essa conclusão pode ser inferida do Relatório Anual Socioeconômico da Mulher de 2013. Ele mostra que as mulheres constituem 51% da população brasileira e metade delas declarou-se de cor/raça negra. No crescente processo de urbanização, em números absolutos mais de 86 milhões de mulheres vivem em cidades, enquanto 14 milhões vivem no campo. Nas zonas rurais elas se ocupam da agricultura familiar e o seu trabalho é invisibilizado, pois a maioria não recebe qualquer remuneração. No tocante à população com deficiência, do total de mais de 45 milhões de pessoas, 56,5% são do sexo feminino.
A queda na taxa de fecundidade e o envelhecimento populacional têm repercutido na organização familiar, com a ampliação dos domicílios monoparentais de mãe ou pai com filhas/os. Em 2011 as famílias monoparentais femininas compunham 16,4% dos arranjos familiares e a chefia feminina dos domicílios representava 37,5% do total de famílias – lembrando que mulheres ganham 30% a menos que homens pelo mesmo trabalho no Brasil e que as mulheres têm sido demitidas bem mais desde o início da crise.
O RASEAM também revela que a taxa de atividade para as pessoas entre 16 e 59 anos era de 74,9%. Entre os homens a taxa é de 86,5%, enquanto para as mulheres é de 64%. A diferença é explicada pela divisão sexual do trabalho, que atribui às mulheres a responsabilidade pelas atividades relacionadas aos cuidados e à reprodução da vida. Aos homens, a produção de bens e serviços para o mercado.
Devido a essa divisão no Brasil há um grande contingente de mulheres em idade ativa dedicadas exclusivamente às tarefas com os cuidados da família, crianças, doentes e idosos – sem remuneração.
Para que a taxa de atividade das mulheres pudesse aumentar uma das soluções seria a implantação de equipamentos públicos como creches e casas para pessoas idosas. Há um déficit enorme que, em face da fórmula adotada para os investimentos em saúde e educação nos próximos 20 anos, não será atendido.
Em outras palavras, as mulheres trabalharão mais e por mais tempo, sem remuneração ou com remuneração precária.
Não esqueçamos que metade da população feminina é constituída de mulheres negras (pretas e pardas). Entre elas, 39,8% estão em situação de pobreza. As mulheres brancas em situação de pobreza são 20,3% do total de mulheres brancas. Por isso, considerando a situação de desigualdades socioeconômicas entre mulheres e homens, o ajuste fiscal e a proposta de reforma previdenciária atingirão preferencialmente as mulheres e aumentarão as desigualdades em razão dos papéis de gênero.
A Emenda Constitucional 55 tem o objetivo claro de inovar o regime fiscal do Estado brasileiro, pouco lhe importando o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, expresso na Constituição: “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Nessa perspectiva é uma alteração incompatível com a Constituição e só poderia ser feita por uma nova Constituinte.