Em uma tarde do fim de novembro, a reportagem chega à Escola Classe 108 de Samambaia, no Distrito Federal, para acompanhar uma aula de educação física. Esta não é, contudo, uma aula como as outras.
Em vez de aprender sobre esportes ou práticas corporais, crianças de uma turma do 2o ano discutem sobre o que meninas e meninos fazem no dia-a-dia.
“Jogar basquete é uma coisa de menino? Ou de menina? Ou de menino e de menina?”, pergunta o professor Paulo Henrique Carmona. Animados, os alunos falam todos ao mesmo tempo; “é de menino!”, diz um, “claro que não, minha prima joga”, retruca outro. E seguem as perguntas: ballet, limpar a casa, jogar futebol, cozinhar; afinal, quem pode fazer essas coisas?
“O professor disse que eu precisava de um homem pra me ‘colocar na linha’”Na atividade seguinte, as crianças precisavam adivinhar um rol de profissões, com base em pistas que eram lidas pelo professor. Depois, tinham que desenhar e dar um nome para o profissional. A ideia era visualizar como existe predominância masculina ou feminina no imaginário de determinadas ocupações (policial, astronauta, cientista, professor, advogado). “Eles trazem todo um repertório pronto de casa, trabalhamos em cima dessas questões”, comenta a professora Vanessa Terumi, que acompanha a turma nas aulas do dia-a-dia.
Por fim, todos eram convidados a explicar por que classificaram as atividades como de menino ou de menina ou de ambos. Nessa fase, vinha a grande questão: “mas você não acha que os meninos podem ser melhores no basquete simplesmente porque treinam mais que as meninas?”. E dá-lhe discussão, crianças afoitas para contar suas experiências.
Desconstrução pura para alunos entre 6 e 8 anos de idade.
“Eu aprendi que menino não é melhor que menina e nem menina melhor que menino”, resume Maria Louysa de Sousa Gomes, 8 anos.
Aulas como a do professor Carmona ainda são uma exceção nas escolas brasileiras, especialmente se levarmos em conta a faixa etária dos estudantes. Em geral, se há algum debate sobre gênero, ele ocorre com adolescentes. “O problema é que, quanto mais velhos, mais os estereótipos estão interiorizados. O máximo que podemos fazer é gerar um contraponto”, comenta o professor de biologia Deneir Meirelles, que, no DF, foi constrangido por uma deputada depois de passar um trabalho com a temática LGBT.
Aprendizagem fica limitada
A escola acaba, por si só, sendo um dos agentes da manutenção dos padrões de gênero. Não é raro, por exemplo, encontrar professores, coordenadores pedagógicos e gestores que repetem o senso comum de que meninas são alunas mais “cuidadosas” e “quietinhas”, enquanto os meninos assumem o papel de bagunceiros.
São esses profissionais que acabam desencorajando as alunas, desde cedo, a praticar esportes. “Toda vez que uma menina tem menos incentivo para fazer algo considerado ‘de menino’, os estereótipos de gênero funcionam como um freio para todas as possibilidades de aprendizagem que poderiam delinear outro futuro para ela”, escrevem Beatriz Accioly Lins, Bernardo Fonseca Machado e Michele Escoura no livro “Diferentes, não desiguais” (Editora Reviravolta), lançado no ano passado.
Segundo as autoras, para os meninos, por outro lado, o fracasso escolar aparece como uma característica de virilidade. Não à toa, com o passar do tempo, mulheres têm superado homens em todos os níveis de escolarização. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) de 2014 revelou que elas são maioria nas escolas, nas universidades e nos cursos de qualificação; embora, contudo, esse desempenho não seja refletido em melhores salários.
Brasileiras têm, em média, 8 anos de estudo; homens, 7,5.
Para o historiador Fernando Seffner, líder do Grupo de Estudos em Educação e Relações de Gênero da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, são as próprias meninas que, aos poucos, mudarão esse cenário, reivindicando mais participação e representatividade em todas as áreas. “Há um movimento de empoderamento feminino estudantil muito forte, isso ficou muito claro durante as ocupações”, afirma o pesquisador.