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A nossa resposta ao caso Masterchef Jr

A cultura do estupro - ou seja, a cultura que convence a todos que estuprar, passar a mão na bunda na balada ou encoxar no ônibus não é tão mal assim - é alimentada justamente por esse falso senso de humor

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Ilustração: Nada Abdalla

 

– Vamos brincar de estupro?
– Não quero!
 É assim que começa.


Acredite se quiser, a piadinha infame acima foi ouvida por uma de nossas repórteres não há um século ou há uma década, mas há dois dias. Naturalmente, ela não viu graça nenhuma e deu uma bela bronca no “engraçadão”.  

Ontem, ela lembrou do episódio ao discutirmos o caso Valentina, a menina de 12 anos do Masterchef Jr que tem ouvido todo tipo de barbaridade sexual nas redes sociais – pior, vinda de homens adultos. O cara que contou a “piadinha” acima pode se achar moralmente superior aos que sugeriram estuprar uma garotinha nas redes sociais. Mas não é.

A cultura do estupro – ou seja, a cultura que convence a todos que estuprar, passar a mão na bunda na balada ou encoxar no ônibus não é tão mal assim – é alimentada justamente por esse falso senso de humor.

Não é à toa que homens que ameaçam e agridem mulheres na internet, quando pegos pela polícia, sempre usam a desculpa do “era apenas uma piada”. Foi isso que aconteceu com os homens que ameaçaram a Nana, nossa diretora de redação, no ano passado. Depois dela iniciar a campanha virtual “Eu não mereço ser estuprada”, recebeu cerca de 500 mensagens ofensivas que, entre outras coisas, a ameaçavam de estupro. A “brincadeira” de alguns custou a ela noites de sono, seu marido teve que cancelar uma viagem profissional, ela parou de trabalhar por um período e teve até que tomar calmantes.

No Brasil, acontece mais de um estupro a cada 10 minutos. Quer dizer, na verdade são mais. É que esse número estarrecedor só dá conta dos estupros reportados. Segundo dados oficiais do Sistema Nacional de Estatísticas em Segurança Pública (Sinesp), foram registradas 50 mil ocorrências do crime em 2014. As tantas mulheres que por medo, culpa, vergonha ou pelo motivo que for, não denunciaram a violência sexual de que foram vítimas não estão incluídas nesse número.

Dentre todas esss vítimas, estima o IPEA, que 50,7% são crianças, ou seja, menores de 13 anos, como Valentina. O crime de sexualizar meninas antes mesmo da puberdade é muito mais comum do que se imagina, perspassa classes sociais e raças. Só na nossa pequena redação, por exemplo, temos mais de um caso de mulheres que foram sexualmente agredidas antes dos 12 anos, por gente da família. Recurperar-se de um acontecimento assim e das marcas sexuais e psicológicas deixadas por ele, elas garantem, não tem nada a ver com humor.

A Letícia, nossa captadora que é também psicóloga, pode presenciar os estragos que casos como esse fazem numa menina – e mais tarde, em uma mulher – de perto em seu consultório. Uma delas já tinha 36 anos quando sentou-se ali com um segredo que escondera do mundo por 30. Quando a mulher contou sobre o abuso sofrido, tão remoto e tão presente, a Letícia pode ver o peso em sua coluna encurvada se desfazer à luz da revelação. Seus olhos ariscos pareciam duvidar quando a Letícia disse que a culpa não era dela. Mas, mesmo incrédula, ela ficou. Assim começaram os meses que passaram juntas, através dos quais a paciente foi construindo uma nova versão da sua história. A vida toda ela fora culpada, e ali começava, finalmente, a ser vítima.

“Mas vem cá, Por que as feministas falam como se só mulheres fossem estupradas?”

Todo estupro é uma tragédia. Ao contrário do que insinuou o deputado Jair Bolsonaro, ninguém merece ser estuprado. E aqui fazemos questão de lembrar a comovente história de Heberson Oliveira. Ele hoje está entre os milhões de brasileiros portadores do HIV. O vírus é a cicatriz invisível e latejante dos estupros que Heberson sofreu na prisão, onde passou dois anos acusado de um crime que não cometeu. Todo nosso sentimento por esse e pelos milhares de Hebersons esquecidos em algum canto de Brasil.

Mas falamos principalmente sobre mulheres porque é às custas dos nossos corpos que os números do estupro no Brasil são tão alarmantes. Somos nós que sabemos o que é viver com medo de ser a próxima. E somos nós que sabemos que, por isso, piadas de estupro não tem graça nenhuma.

Em março de 2014 o IPEA publicou um relatório baseado nos dados oficiais do Sinesp. Descobrimos ali que 88,5% das vítimas de estupro são mulheres. Quando nos debruçamos apenas sobre a população adulta o número alcança os impressionantes 97,5% de vítimas do sexo feminino.

Talvez você não saiba, mas fatalmente conhece alguma dessas mulheres. As pilhas e mais pilhas de corpos femininos desmanchados por histórias de violência sexual nos obrigam a investigar uma verdade incômoda: os homens estupram muito mais do que as mulheres. Os agressores do sexo masculino representam entre 93% e 97%, diz o IPEA.

Muita gente procura explicar esse dado desconcertante recorrendo ao argumento fácil e falso de uma suposta natureza masculina. Falam em testosterona, em instinto de perpetuação da espécie. Supõem que o desejo sexual é privilégio dos homens. Devem desconhecer o clitóris, o único órgão que não tem outra função além do prazer sexual. Pior: querem nos fazer crer que, como os bichos, os homens são incapazes de controlar o suposto instinto – mas nem por isso, é claro, autorizam-nos a tratá-los como animais. E, neste ponto, estamos de acordo: não será concedida aos agressores a indulgência da irracionalidade. Nós os trataremos como adultos capazes de assumir a responsabilidade por escolher cometer um estupro.

Por que, então, os homens estupram tão mais do que as mulheres? Se a resposta não está na natureza, somos forçadas a buscá-la na cultura. E aqui voltamos à expressão que faz tanta gente correr desse assunto, e que nos obriga a reconhecer que estamos sendo coniventes com um cenário que não poderia levar a outra coisa senão a 50 mil estupros reportados por ano. Esses estupros continuarão acontecendo enquanto não pudermos reconhecer e discutir com responsabilidade esse quadro que só tem um nome: cultura do estupro.

A temida expressão foi cunhada pelo movimento feminista na década de 70, e designa o conjunto de crenças que normaliza a violência contra a mulher, criando um cenário em que os homens são encorajados a agredirem e as mulheres são culpabilizadas pelos abusos sexuais sofridos. Não, não é coisa do mundo do Papai Noel ou dos unicórnios: a cultura do estupro é tão real quanto as vítimas dela. Quando vamos começar a ouvir seus gritos? Já não é hora de começar a pensar como estamos educando nossos homens? Até quando vamos tolerar homens fazendo, em público, piada e apologia à violência sofrida por tanta gente?

Só o olhar crítico pode nos redimir. Quem se omite e nega a cultura do estupro se torna cúmplice dos agressores.

Para fazer parte desta trama sórdida não é preciso ser publicitário de marca de cerveja, trabalhar no programa do Luciano Huck, cantar desrespeitosamente desconhecidas na rua ou vazar um vídeo privado na internet. Basta fazer nada.

Basta fazer nada diante dos seus amigos da timeline que estão soltando risos sobre fazer sexo com a Valentina. Basta fazer nada diante de propagandas que colocam a mulher como objeto a serviço do prazer masculino. Basta continuar fazendo nada diante das besteiras ofensivas que, todas as tardes de domingo desde 1989, Fausto Silva pronuncia enquanto mulheres semi-nuas servem de enfeite.

Mas e nós? O que a cultura do estupro está ensinando às mulheres? Nós estamos aprendendo a sentir vergonha da nossa própria nudez, exceto quando ela está a serviço do prazer masculino – nas revistas, na TV, na pornografia. Estamos aprendendo que se nossos maridos querem sexo, nós devemos isso a eles, porque nossos desejos são menos importantes do que os desejos deles. Estamos aprendendo que homens são “assim mesmo”, e que temos que nos policiar para não atiçar o desejo adormecido e incontrolável de um estuprador. Estamos aprendendo que a culpa é nossa, que cabe às mulheres não serem estupradas, e não aos homens não estuprar. Estamos aprendendo a chamar a coleguinha de escola de vagabunda por causa da roupa que ela escolheu, e que aprendemos que ela não tem o direito de escolher. Nós estamos aprendendo que nossos corpos não nos pertencem.

E aí? O que fazer diante de tudo isso?

Não é fácil, mas é possível virar esse jogo. Constatar que o problema é social é reconhecer que ele não está escrito em pedra – e tem muita gente trabalhando pra escrever outra história. Sim, turma, depois desse palavreado todo é hora de respirar com alívio e descobrir que dá trabalho, mas dá pra fazer. A primeira coisa que você pode fazer é conversar com as pessoas sobre a cultura do estupro. É preciso que sejamos implacáveis. Por vezes seremos acusad@s de moralistas. Foda-se: isso não é nada perto da acusação de cumplicidade com estupros.

Não existe outro jeito. Não há perspectiva de discussão sobre os direitos das mulheres em Brasília, como deixou claro o presidente da câmara, Eduardo Cunha (nossa, ele não cai nunca?!). A televisão não vai mudar. A publicidade não vai mudar. Não espontaneamente, pelo menos. Não sem que a gente perca o medo e comece a discutir a cultura do estupro na TV, nos jornais, nas redes sociais. Quando você vir, aponte. Há muitos documentários e artigos sobre cultura do estupro. Pesquise, mostre aos seus amigos.

Não tenha medo de ser chato. Tenha medo de que mais estupros aconteçam.

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