Atenção: A reportagem abaixo mostra trechos explícitos de conteúdo misógino e racista. Optamos por não censurá-los, porque achamos importante exemplificar como o debate é violento na internet, como a violência política contra mulheres se espalha pelas redes e é sexista em suas formas, como podemos identificá-la e quais termos são frequentemente direcionados às candidatas ofendidas.
Vanda Witoto (35) nasceu Ortega, mas adotou o nome de seu povo indígena ao entrar na militância política em Manaus. Ela começou lutando pelos direitos dos habitantes do Parque das Tribos, único bairro majoritariamente indígena da cidade, com mais de 700 moradores de 35 etnias. Na pandemia, passava de porta em porta oferecendo seus serviços como técnica de enfermagem e chegou a criar, junto aos colegas, uma unidade hospitalar no bairro, enquanto seus conterrâneos morriam sem oxigênio nos hospitais da cidade. Em 2020, ela foi a primeira candidata indígena e amazonense à Câmara Federal.
Sua imagem foi amplamente propagada após ser a primeira indígena vacinada no estado. Neste ano, decidiu ser candidata pelo partido Rede. Estreante, já embarcou em uma tentativa histórica de ser a primeira indígena a ocupar o cargo de deputada federal no Amazonas. As expectativas eram altas e incertas, mas de algo ela tinha certeza: precisaria enfrentar a violência cotidiana que a acompanha desde a infância.
Mesmo com esse entendimento, Vanda se assustou com o que viu. Foram homens que desacreditaram de seu potencial, pessoas na rua que abordaram sua equipe em tom vexatório, comentários preconceituosos em redes sociais e tentativas de silenciamentos na internet e na vida real.
“Homens brancos e indígenas falaram alto em cima de mim, me colocando como essa mulher pequena que não ia ser eleita. Em vários momentos disseram que eu não tinha chance nenhuma de fazer essa caminhada política, por eu ser jovem e por eu ser mulher. Isso (a violência) faz parte de uma realidade nossa (indígena), mas vivenciar isso como candidata me assustou”, relatou.
Não apenas a candidata sofreu violência, suas apoiadoras também. Uma participante de seu comitê, que não quis se identificar, foi questionada e ameaçada enquanto fazia panfletagem. “Fui abordada por um cara que perguntou se tinha aborto no material dela. Ele disse que se ela colocasse algo sobre aborto, ela teria que ser presa.”
Bancada Indígena
Neste pleito, o Brasil teve o maior número de candidaturas indígenas registradas desde a criação da autodeclaração de raça, em 2014. No Amazonas, foram 603 candidatos – 16 eram indígenas, nenhum foi eleito. Desses, oito foram mulheres. Considerando o Brasil, houve deferimento de 165 candidaturas (0,63%).
Em entrevista ao coletivo Abaré – Escola de Jornalismo, Perpétua Suni, do povo Kokama, candidata não eleita a deputada estadual, falou da falta de representatividade na Assembleia Legislativa do Amazonas, que nunca teve um parlamentar indígena em seu quadro. “Nós, como povos indígenas, também fazemos parte dessa sociedade, portanto, temos que estar inseridos dentro [do sistema político]. Nós somos uma população muito grande, mas não temos um representante indígena no espaço estadual.”
Perpétua Suni (PDT) se uniu às candidatas Bia Kokama (PSC), Iza Maia (Solidariedade), Jaci (PV), Maria Bonita (PSC), Cláudia Baré (PDT), Lúcia Mura (PROS), Vanda Witoto (Rede) e Anne Moura (PT). Juntas, elas tiveram 35.702 votos. A maioria dos votos foram para Vanda Witoto, que recebeu 25.545 mil.
Anne Mura, candidata a vice-governadora na chapa com Eduardo Braga (MDB), foi ao segundo turno, com 401.817 votos. Nenhuma das candidaturas indígenas conseguiu a vitória. Em nível federal, apenas 4 candidatas indígenas tiveram sucesso em suas proposituras: Célia Xakribá (MG), Juliana Cardoso (SP), Silvia Waiãpi (AP), Sônia Guajajara (SP).
O Amazonas nunca elegeu uma candidatura indígena ao Congresso Nacional, apesar de ser o estado com maior número de população indígena do país, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE.
Discurso de ódio
“Cadê a prova de que esta mulher é indígena?”, “na Amazônia índio dirige Hilux, eles querem dinheiro como todo mundo“, “querem enganar os índios“. Esses são alguns dos tweets ofensivos que Vanda Witoto recebeu durante sua campanha. Além das violências públicas na internet, ela também enfrentou ataques em aplicativos de mensagens.
Em um grupo de WhatsApp com eleitores, a candidata foi recorrentemente silenciada por um membro homem que apagava todas as suas publicações. “Eu quero mover um processo sobre isso porque ele apagava tudo, todas as minhas postagens, minhas divulgações, os áudios que eu mandava, os vídeos falando. E era um homem“, explica.
Os ataques contra ela ficaram mais frequentes no Twitter de acordo com a proximidade do primeiro turno nas eleições. Análises de dados capturados pelo MonitorA , observatório de violência política de AzMina, InternetLab e o Núcleo Jornalismo, mostram que Vanda Witoto passou a receber mensagens com teor preconceituoso por conta de sua origem indígena.
Quando o candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) esteve no Amazonas e se encontrou com indígenas, no fim de agosto, vários comentários chamavam os povos originários de “índios” e afirmavam que eles seriam roubados. As palavras remetem a um histórico de violência, onde indígenas recebem tratamento pejorativo e veem seus territórios invadidos e explorados por garimpeiros e fazendeiros com apoio do poder público.
Os ataques aos povos originários são vivenciados todos os dias no país, com assassinatos de lideranças, mortes em aldeias, conflitos territoriais com criminosos. De acordo com dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o Amazonas foi o estado com o maior número de assassinatos de indígenas em 2021 – no ano anterior ele ficou em segundo lugar, depois de Roraima.
O Cimi também registrou um aumento de assassinatos de indígenas dentro da Amazônia Legal. Os casos aumentaram de 121 em 2018 para 180 registros em 2021, um aumento de 48%. O Amazonas, Roraima, Maranhão e Pará são os estados com o maior número de registros dentro da Amazônia. Essas violências passam para a internet, para o ambiente político e se junta ao quadro de misoginia e machismo do país.
Pela primeira vez, o Brasil adota nesta eleição uma lei que tipifica a violência política de gênero. O artigo 3 da Lei 14.192 define que essa violência é “toda ação, conduta ou omissão que tenha a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos das mulheres”. A lei também incluiu no Código Eleitoral a proibição de propaganda eleitoral “que deprecie a condição de mulher ou estimule sua discriminação em razão do sexo feminino, ou em relação à sua cor, raça ou etnia”. A pena para o crime de assédio, constrangimento, humilhação ou ameaça vai de um a quatro anos de prisão.
A advogada quilombola Luciana Santos, integrante do coletivo Odaras, que presta consultoria em direito antidiscriminatório, afirma que a lei é positiva e reflete uma demanda gerada de casos ocorridos nos últimos anos, mas frisa a importância de promover campanhas para os registros de denúncias.
“É importante destacar o aspecto interseccional, já que a lei cita a questão racial e há uma previsão de aumento de pena para os crimes cometidos contra mulher gestante, maior de 60 anos e/ou com deficiência. Quanto à eficácia, os números relativos à campanha em curso trarão indicativos sobre isso. Daí a importância das denúncias, pois são necessários dados para se fazer essa avaliação“, explica.
Mesmo com os ataques, Vanda Witoto mantém a postura combativa que entende ser que sempre teve e que é necessária para a sobrevivência de seu povo: “Estou preparada para combater tudo o que vier, porque não me silencio mais. As mulheres indígenas serão eleitas, vamos fazer esse enfrentamento. Eles não passarão“.
O MonitorA é um observatório de violência política online contra candidatas(os) a cargos eletivos. O projeto é uma parceria entre a AzMina, o InternetLab e o Núcleo Jornalismo.
O MonitorA conta ainda com a parceria de veículos regionais que produzem reportagens sobre violência política com o recorte de seus territórios. Esta matéria, sobre o cenário da região Norte, foi produzida pela Abaré Jornalismo. Participam do MonitorA ainda Agência Tatu (AL), data_labe (RJ), Portal Catarinas (SC) e A Lente (MT).
Essa iniciativa é financiada por Luminate e Reset. Também contamos com a doação de mais de 440 leitores na campanha Isso Tem Nome. O apoio da nossa comunidade é essencial para AzMina continuar produzindo jornalismo pelos direitos das mulheres. Colabore você também.