logo AzMina

Hiperexpectativa, arrependimento e desesperança: entenda a tríade do heteropessimismo

Desilusão com os homens pode levar mulheres a abrir mão das relações amorosas ou permanecerem nelas sem acreditar que os parceiros vão melhorar

Nós fazemos parte do Trust Project

Sensação coletiva de decepção, constrangimento, arrependimento ou desespero com as relações heterossexuais – especificamente sobre estar em uma. Alguém se identifica? Tanta gente tem sentido essa desesperança, que ela ganhou até um nome: Heteropessimismo. Traição, machismo, imaturidade, falta de comprometimento em discussões de gênero são alguns dos motivos que justificam essa desilusão com os parceiros.

Em um site da Califórnia, cujo objetivo é propor que usuários façam perguntas e recebam respostas e conselhos de pessoas desconhecidas de volta, uma pessoa escreveu: “o que eu faço se não confio nas intenções dos homens?” Os 55 comentários que reagem à postagem, a maioria de mulheres, tentam sugerir caminhos, enquanto muitas compartilham da mesma sensação com seus encontros amorosos. 

Entre as soluções trocadas, há encorajamentos para “abstinência de dates”, “mudança de foco para outras atividades”, além de estratégias que incluem uma triagem similar a um processo seletivo: “se o cara for bem em todas as etapas, quem sabe a gente dá uma chance”. Há um tom parecido em todas as mensagens: desencanar de encontrar alguém legal, porque tudo indica que não há. 

A criadora de conteúdo Marcela Casagrande, conhecida nas redes sociais como Martchela, apostou no ano sabático, mas adianta: não resolveu muita coisa. “Heteropessimismo é esgotante. Porque enquanto tentamos, temos esperança, mas quando nos olhamos no espelho, dizemos: não dá mais.” E ela detalha de onde vem esse cansaço: “O cara está mal, e você tenta ser o suporte, leva para a terapia… Está sempre ali, ensinando, ensinando, ensinando”. 

Asa Seresin, escritore não binárie, que cunhou o termo no fim de 2019, explica a origem dele ao relembrar uma conversa com uma amiga que confessou se sentir humilhada por sua própria heterossexualidade, em momentos de sua vida em que teve – ou sofreu – uma atração romântica por homens cis. 

Revolucionar a cultura heterossexual

Tomadas por essa descrença, mulheres, que são as principais vítimas, podem escolher não mais se abrir para possibilidades amorosas – como deixar de ir a dates e conhecer outras pessoas – ou permanecer em relações, sem a esperança de que os relacionamentos vão mudar. 

O heteropessimismo geralmente concentra-se fortemente nos homens como a raiz do problema”, diz o artigo em que projetou o assunto. Apesar de não ser um “mal” intrínseco aos homens, para a autora é preciso revolucionar “urgentemente” a cultura heterossexual e a maneira como eles veem os relacionamentos. Segundo a terapeuta especializada em sexualidade positiva, Caroline Amanda, o heteropessimismo pode ser dividido em três principais momentos: 

  1. Hiperexpectativa. Começa com a ilusão de que a euforia do início do relacionamento, ou do encontro, vai ser duradoura. Parece que a relação caminha para o lugar da intimidade e da partilha, exigindo outro ritmo e pedindo mais presença e menos performance, mas o elo não se sustenta e o rompimento acontece. 
  1. Arrependimento. Com as rupturas e os afastamentos, muitas vezes sem um fechamento respeitoso, vem a frustração e o arrependimento por ter se permitido ao encontro. A pessoa passa acreditar que não deveria ter se aberto e se disposto a estar com outra pessoa.
  2. Desesperança. Cada vez que as expectativas não são atingidas, a falta de esperança passa ocupar um lugar cada vez maior, levando a pessoa a adotar recursos de proteção e autopreservação, optando por celibato voluntário ou  evitando a todo custo novos encontros.
Leia mais: Homens podem ser feministas?

Angústias x mudanças na prática 

Asa Serasin faz uma crítica a como pessoas heteropessimistas lamentam, mas não se envolvem em um movimento de desbravar outros possíveis caminhos de viver a sexualidade. “Alguns agem de acordo com as suas crenças, escolhendo o celibato ou a opção agora largamente obsoleta do lesbianismo político, mas a maioria mantém-se fiel à heterossexualidade, mesmo quando a julgam irremediável.” 

Uma opção, segundo Asa e outras estudiosas do tema, é questionar a  heteronormatividade (imposições que empurram as pessoas a agirem de acordo com o que se espera para cada gênero) e a heterossexualidade compulsória (que coloca a heterossexualidade como padrão e que por vezes é vivida sem que a pessoa se questione se, de fato, não tem desejo por gêneros diferentes). 

Questionar o sistema e o próprio papel social, no entanto, talvez não seja suficiente para sair do heteropessimismo, avalia Ana Canosa, psicóloga e educadora sexual. Isso porque, embora a orientação sexual possa ser fluida, “nem todas as pessoas poderão se sentir atraídas por outras do mesmo gênero.” 

Leia mais: Quantos héteros top do bem você conhece?

Não se relacionar é o caminho?

Para quem gosta de sexo e de se relacionar, o celibato voluntário pode ser desafiador e pouco saudável do ponto de vista psíquico. Fazer piadas ou repetir discursos de que todo homem é igual, conforme Ana Canosa, esconde um ressentimento, que não resolve o conflito e nem atende a necessidade da companhia romântica. A psicóloga recomenda se abrir para a construção de pontes e diálogos entre os gêneros – sabendo que não há uma alternativa fácil e sem desconforto. 

Apostar nas relações heterossexuais é ter consciência de que ela exigirá conversas honestas sobre feminismo, masculinidade tóxica, violência de gênero e sexualidade. “São séculos em que as expressões de gênero estavam dentro de caixas muito estabelecidas e isso é um fantasma que está presente o tempo todo”, acrescenta Ana. Em última análise, é preciso acreditar que é possível construir uma relação saudável, na intimidade, para não aceitar as condições impostas, mas também não se fechar para a vida romântica. 

Ainda que a desesperança em relação ao futuro seja um processo ruim, o heteropessimismo ainda diz respeito a mulheres que acessam, em alguma medida, a ideia de que podem ter alguém. Quem faz esse alerta é Caroline Amanda, que atende mulheres negras e não brancas em sua clínica de educação e saúde sexual. “Enquanto as brancas trazem essa demanda (de desilusão), na medida em que vivem a experiência de uma relação, mulheres negras partem do ponto da impossibilidade de não fazer parte das opções (amorosas)”, salienta. 

Leia mais: Rede de apoio para mães: por que é tão difícil formar uma?

Causas e soluções coletivas

Embora apareça no campo relacional, esse não é um assunto individual. Ele é um sintoma da insatisfação com a cultura sexual afetiva, que vai dizer o que é ser homem, o que é ser mulher e o que é se relacionar nesta sociedade, cobrando papéis pré-definidos – que sempre vão tentar envergonhar aquela que é sexualmente livre e cobrar que os homens se comportem a partir de uma masculinidade tóxica.  

“Mulheres se veem mais desesperançosas porque sentem que tem que entrar em uma relação com uma proposta ‘masculina’, principalmente no sexo casual, com um roteiro pré-concebido”, esmiúça Ana Canosa. Ao lutarem para avançar na discussão sobre papéis e desigualdade de gênero, elas sentem que, na intimidade, seus potenciais parceiros ainda estão presos em uma lógica ultrapassada. 

Para não se entregar ao heteropessimismo, além de se aliar aos movimentos feministas que propõem discussões e mudanças estruturais, e ter conversas abertas com o parceiro (caso esteja em uma relação), a autointimidade oferece uma redução de riscos e danos. É sobre investigar e explorar a própria sexualidade. “Ser íntima de si e conseguir sustentar relações que façam jus ao que você sente que veio fazer no mundo”, explicou Caroline Amanda. 

Marcela Casagrande, a Martchela, criou o podcast Lambisgóia para compartilhar dates ruins e os perrengues da mulher solteira. “Não aguentamos mais sermos as emocionadas e sensíveis demais enquanto os homens não fazem o mínimo”, desabafa ela, acrescentando que eles se acham os galãs da novela das 9 e ainda se algo der errado saem como coitadinhos. “Estamos exaustas.”

Por facilitarem encontros, os aplicativos de relacionamento acabam por promover uma  “desilusão em massa”, em que as experiências se repetem e se replicam entre os círculos sociais. Talvez, diferenciar o que se espera e se busca, fazer pequenas pausas para digerir e entender o que viveu, contribuem para esse sentimento desconfortável não se cristalizar.   

Leia mais: 11 coisas que você precisa saber antes da primeira vez

Faça parte dessa luta agora

Tudo que AzMina faz é gratuito e acessível para mulheres e meninas que precisam do jornalismo que luta pelos nossos direitos. Se você leu ou assistiu essa reportagem hoje, é porque nossa equipe trabalhou por semanas para produzir um conteúdo que você não vai encontrar em nenhum outro veículo, como a gente faz. Para continuar, AzMina precisa da sua doação.   

APOIE HOJE