Lembro como se fosse hoje: um dia qualquer, na faculdade, uma colega me contou que ia lançar um livro de poesia. “Uau! Tenho uma amiga escritora”, exclamei, achando aquilo um feito incrível e inalcançável. Ao que ela retrucou: “Ué! Mas você não escreve também? Já li poemas no seu blog”.
“É verdade, eu escrevo. Se tem uma coisa que faço é escrever, de poesia a reportagens. Mas nunca pensei que isso faria de mim uma escritora, assim, ‘profissional’. Me parece algo tão distante…”, respondi, sem ainda relacionar aquela autodesconfiança ao meu gênero.
Uma década depois, me vejo sentada no meio de mais de 400 escritoras para uma foto que já se sabia histórica, antes mesmo de ser tirada. Dia 12 de junho de 2022. Mais de quatro centenas de mulheres ocupando uma arquibancada do estádio do Pacaembu (SP) – território tão simbolicamente relacionado ao masculino – para dizer com nossa presença: não adianta tentar nos silenciar, a literatura feita por mulheres existe e é imensa. E se continuarem nos apagando dos livros de história, escreveremos outros, de próprio punho, resgatando nossas protagonistas do passado, registrando as presentes e sonhando as futuras.
O encontro foi organizado pelas escritoras Giovana Madalosso, Natália Timerman e Paula Carvalho, editora da revista Quatro Cinco Um e organizadora da Feira do Livro na Praça Charles Miller, em São Paulo, que ocorreu de 8 a 12 de junho. A ideia era recriar a foto “Um grande dia no Harlem”, de Art Kane, que retratou uma geração do Jazz em Nova Iorque, no ano de 1958. A versão paulistana da literatura de 2022 foi clicada pela fotógrafa Mariana Vieira Elek. Autoras também se reuniram em mais de 20 cidades brasileiras, além de Lisboa e Londres, chegando a mais de mil mulheres que escrevem.
Em meio à emoção do momento, ao clima de sororidade, luta e amor que pairava no ar, passava um filme na minha cabeça que ajuda a entender a dimensão de uma iniciativa como essa. Minha mente me levou de volta àquele dia na faculdade, em que descobri que, talvez, ser uma escritora estivesse sim ao meu alcance.
Blogs ou caderninhos literários
Na época, comecei a comentar o assunto com outras amigas e descobrimos que quase todas elas tinham seus blogs ou caderninhos literários, mas os mantinham bem escondidos, secretos. Afinal, nos idos de 2010, as redes sociais já existiam, mas não dominavam as publicações pessoais na internet e pouca gente podia acessá-las do celular a qualquer momento. Os blogs nem sempre tinham os nomes dos seus donos e era preciso saber qual endereço digitar para encontrá-los.
Então, decidimos fazer um sarau para lermos nossos poemas, contos e escritos em geral. Um encontro entre amigas, já que a maioria de nós tinha uma baita vergonha de se apresentar em público – ainda mais, porque o que escrevíamos estava muito ligado ao corpo e às experiências de ser mulher. Foi um momento catártico! Parecia que a gente precisava desesperadamente daquele espaço de expressão – assim como sentimos no domingo (12/6/22) que precisávamos daquele encontro neste Brasil despedaçado. Ouvir umas às outras nos encorajava a criar e compartilhar nossa arte com o mundo.
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Naquele sarau dos tempos de 2010, logo percebemos que todo aquele receio de publicar e ler em voz alta tinha uma origem conhecida, que vínhamos tentando desconstruir há algum tempo em coletivos feministas, mas que, surpreendentemente, ainda não havíamos relacionado à literatura: o patriarcado. Percebemos essa ligação, que hoje me parece tão óbvia, quando paramos para nos perguntar sobre nossas referências literárias e quantas escritoras já tínhamos lido. Pouquíssimas.
Mas será que existiam mesmo menos escritoras do que escritores? Ou elas estavam escondidas debaixo da enorme crosta de machismo estrutural que encobre nossas vidas e soterra nossa história? Decidimos investigar juntas e, assim, nasceu o saudoso coletivo Circular de Poesia Livre (2011-2016). A ideia era libertar nossos versos e fazê-los circular no espaço público. Quem descobria uma autora, contemporânea ou antiga, apresentava às outras. Desse jeito, montamos um repertório, misturado à nossa própria produção, para ler em saraus públicos.
Ocupar os espaços públicos
“A poesia que ecoava na praça se tornava mais poesia. E a praça, mais praça”, escrevi num diário depois do nosso primeiro “Sarau das Mulheres Livres”, na Praça Roosevelt, na cidade de São Paulo. A adesão do público foi surpreendente. “E ficou a sensação, suposição singela, de que, naquele amontoado de papeizinhos toscos sobre livros e rabiscos, ali no criado-mudo mal iluminado, numa casa tão comum como qualquer outra, aquelas insignificantes letrinhas podiam ser semente de uma revolução”, continuei. Mas não imaginava, de fato, o tamanho da transformação que aqueles encontros subversivos operariam na minha vida. Muito menos, que iniciativas parecidas começariam a pipocar Brasil e mundo afora.
Pouco tempo depois, consegui publicar dois livros de poesia por editoras independentes, ganhamos uma bolsa do finado Ministério da Cultura – bons tempos! – para escrever uma antologia do coletivo, e acompanhei os lançamentos de várias amigas. Em 2017, me juntei a Ana Rüsche, Lubi Prates, Maria Giulia Pinheiro, Luiza Romão e outras autoras para contestar o Prêmio Bravo! de literatura, que nunca tinha premiado uma mulher sequer. No mesmo ano, Maria Valéria Rezende criou o Mulherio das Letras, que hoje reúne mais de sete mil pessoas interessadas em celebrar e fortalecer a literatura feita por nós.
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Entrei no mestrado para estudar a poesia de Olga Savary e Maria Teresa Horta e vi grupos de estudo de escritas feitas por mulheres se espalharem por universidades. Acompanhei clubes de leitura nascerem e crescerem, como o Leia Mulheres, e comecei esta coluna aqui na revista AzMina. Ao longo do caminho, aprendi que nossa luta é interseccional, já que, mesmo entre mulheres, há perfis mais discriminados que outros, como as mulheres negras, periféricas, LGBTQIA+ e as mães.
Por isso, esse domingo, no encontro para a foto histórica, subimos alguns degraus da arquibancada para que o coletivo de mulheres negras escritoras “Flores de Baobá” pudesse ficar em primeiro plano. Elas foram aplaudidas de pé quando chegaram e a autora Tatiana Nascimento trouxe cartazes lembrando que o primeiro romance publicado no Brasil foi escrito por uma mulher negra: “Úrsula”, de Maria Firmina dos Reis, lançado em 1859. Se ela foi apagada da história oficial, nós inscrevemos seu legado na nossa história para as gerações futuras.
Quantas mais formos, melhor
Na minha bolha literária, autoras de várias origens reinam e agora existe até uma livraria que só vende livros escritos por mulheres. Às vezes, quase esqueço que o panorama geral continua nos excluindo e silenciando de diversas formas – umas mais que outras. Mas sempre há outras mulheres com coragem para enfrentar meios hostis, que acabam esbarrando em barreiras do machismo estrutural, o que serve para lembrar de que precisamos sempre marcar nossa presença. Afinal, basta qualquer crise para surgirem retrocessos.
Lembramos também que a competição entre nós é tão mitológica como o ideal de feminilidade. Quantas mais formos, melhor. Ali, naquele encontro, a vontade era abraçar cada uma das presentes, conhecer seus trabalhos, ouvir suas histórias, ficar para sempre naquele ambiente de profundo reconhecimento e acolhimento. Um lugar seguro para ser quem somos – algo tão difícil de se encontrar hoje em dia.
Um grupo de mulheres sentadas numa seção de arquibancadas que resiste, em meio a outras demolidas, num espaço público histórico que foi vendido à iniciativa privada. Mulheres gritando por democracia e sendo reprimidas, mas, ainda assim, fazendo seu manifesto, me parece algo simbólico da atual realidade brasileira. A beleza da luta frente à ruína, a reparação histórica, a tomada do espaço público.
“Não queremos apenas um teto todo nosso”, disse Giovana antes do clique oficial, em referência ao ensaio “Um teto todo seu”, de Virgínia Wolf. A autora inglesa reivindicava autonomia financeira e moradia própria para que as mulheres pudessem produzir literatura, na Inglaterra de 1929. “Queremos um espaço público todo nosso!”, continuou ela, antes de ser ovacionada pela nossa pequena multidão. E aqui, acrescento: queremos uma história toda nossa e já começamos a escrevê-la. Se uma foto vale mais que mil palavras, um encontro vale mais que mil imagens. Isso é literatura. Vamos juntas!