Trabalho com relações etnicorraciais há mais de dez anos. E sempre que pergunto às pessoas participantes de palestras, cursos, oficinas, do que elas imaginam que vamos tratar quando digo que discutiremos a questão racial, a resposta é unânime: pessoas negras, racismo contra pessoas negras, a vida das pessoas negras… e por aí vai…
Em todos esses anos, em nenhuma única vez, qualquer pessoa foi capaz de pensar que essa discussão também pode – e deve – ser sobre pessoas brancas.
O racismo é uma ideologia de dominação que se pauta na compreensão da superioridade de uma raça – branca – e estabelece tudo que está relacionado com as pessoas brancas como superioridade.
Aqui vale à pena fazer a linha e dizer como aquela companhia aérea: “você já sabe, mas não custa lembrar”: sabemos e temos o convencimento há muito tempo de que raça numa perspectiva biológica não existe, o projeto genoma não deixa nenhuma dúvida quanto a isso, no entanto, quando falamos de racismo estamos pensando aqui o conceito de raça desde uma perspectiva sociológica e é inegável também a existência de uma construção do que é raça na dinâmica das relações raciais na sociedade.
O grande problema, é que todas as vezes que se pensa em raça, se pensa em pessoas negras, porque uma das vantagens que o racismo atribui às pessoas brancas é serem consideradas uma norma, um padrão naturalmente construído, e de tão plenamente assimilado pela sociedade e estabelecido é praticamente invisível.
As pessoas brancas não sentem que possuem raça e, dificilmente, refletem a sua condição racial, mas deveriam fazê-lo e esse passo é essencial para a superação do racismo em nossa sociedade.
O processo de socialização se refere àquela dinâmica na qual as pessoas assimilam hábitos, valores, comportamentos e crenças de uma determinada sociedade e a percepção de si e do outro também são consequências desse processo aquilo que consideramos normal, aquilo que consideramos que é nosso lugar, aquilo que podemos fazer, o que devemos, o que as outras pessoas não deveriam…
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Numa perspectiva racial, desde o começo da vida, as pessoas recebem informações sobre seu valor e sobre os lugares que podem e devem ocupar de acordo com seu pertencimento étnico-racial, e estamos acostumades a pensar isso em relação às pessoas negras:
Sabemos que as crianças negras, aprendem que não são bonitas: que existe um problema com a cor da sua pele, com o formato do seu nariz, com o tamanho da sua boca. Mas quase nunca discutimos que um processo de socialização também está acontecendo com as crianças brancas. Aprendem que só o seu fenótipo é bonito, aprendem que o seu cabelo liso, a sua pele clara, que tudo isso é o padrão para a beleza, aprendem que são mais importantes e que merecem tudo e podem fazer tudo, porque recebem informações lhe garantem saber-se superiores às demais crianças.
Ao longo da vida, a socialização que se dá nas relações familiares , mas que também acontece na escola, a partir de um estudo de uma história europeia branca- insistentemente e erroneamente chamada de história geral, que invisibiliza a presença de outros povos, os filmes, séries, músicas confirmam essa percepção de norma, superioridade e direito inconteste de ser e fazer tudo que é mais importante, e ninguém fala sobre isso.
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Aprender que é inferior seguramente é uma aprendizagem que destroça a subjetividade de alguém, mas aprender que é superior também é igualmente danoso. É impossível haver alteridade quando há uma noção de superioridade em curso.
É necessário que as pessoas brancas revisitem a sua forma de ser e estar no mundo, mas principalmente a sua forma de perceber a si mesmas e as demais pessoas. Esse passo é essencial para que as mesmas possam se conectar com a sua construção enquanto pessoas brancas, perceber as noções de superioridade que estruturam o seu ser branco. Para que possam entender que são pessoas humanas assim como todas as demais e que por isso devem se interessar em conhecer a história dos demais povos, que são histórias da humanidade, que possam se conectar com uma dimensão de alteridade que lhes permita sair da superioridade e que para isso possam identificar todo o processo de coisificação das pessoas negras que aprenderam desde cedo e que vem permeando sua forma de estar no mundo. Ou seja, identificar que já esqueceram do que cantavam na educação infantil, quando faziam roda e diziam “plantei uma cebolinha no meu quintal, nasceu uma negrinha de avental, dança negrinha, eu não sei dançar, mete a chibata que ela dança já”, e que hoje não cantam a música mas estão conectadas à certeza de que sua autoridade ante as pessoas negras é incontestável e que as mesmas devem se submeter ou serem punidas.