Recentemente, debatedores de políticas afirmativas no Brasil têm se lembrado das pessoas trans. Suponho que em virtude do aumento considerável, e positivo, na visibilidade da população. Nem vou entrar no mérito: obviamente a população trans precisa de ações afirmativas. Só discorda dessa afirmação quem ignora a realidade marginalizada dessas pessoas na sociedade, que as enquadra, sem exageros sociológicos, na categoria das “castas”, junto à população em situação de rua.
Algumas estratégias são muito importantes para que se maximize o potencial dessas políticas. Esse conhecimento foi acumulado, ao longo de décadas, por aqueles que aplicam ações afirmativas planeta afora – incluo também minha experiência como assessora de diversidade e apoio aos cotistas e coordenadora do Centro de Convivência Negra (CCN) da Universidade de Brasília (UnB).
Primeiramente, vale explicar o que são as tais ações afirmativas, que vale ressaltar, não se restringem à reserva de vagas, amplamente conhecidas como “cotas”.
As políticas afirmativas foram desenvolvidas a fim de reverter tendências históricas de desvantagem de grupos sociais excluídos, em áreas como a educação e o emprego. Elas são usadas quando alguns grupos sofrem com diferenciações de status e falta de acesso aos bens sociais – se prejudica, sistematicamente, determinados grupos, ao passo em que outros grupos são privilegiados.
Assim, não se trata de achar que esses grupos têm posição inferior na sociedade por conta de sua incapacidade, mas, isso sim, de entender que condições sociais estabelecidas historicamente exigem políticas públicas para sua superação.
São, fundamentalmente, mecanismos com o objetivo de inserir grupos sociais em ambientes nos quais eles não se encontram significativamente representados. Fazem parte desse conjunto de políticas ou ações afirmativas:
- reduzir a burocracia que prejudica pessoas com demandas particulares;
- estabelecer estímulos econômicos governamentais para empresas que incluem minorias;
- criar obrigações legais de representatividade de pessoas oriundas de grupos discriminados nos meios de comunicação e propaganda, como peças televisivas;
- o acréscimo de pontuação, em determinadas provas seletivas, para pessoas oriundas de grupos ou regiões desprivilegiadas; ou ainda, entre outras iniciativas possíveis,
- a reserva de vagas para grupos sociais específicos (cotas), em instituições das quais são historicamente apartados.
Para as pessoas trans, o direito ao nome social foi um avanço, mas ainda é preciso garantir o direito à retificação do registro civil (com o nome e sexo sociais), sem necessidade de que a condição de pessoa trans seja considerada uma doença ou se perca em burocracias judiciais.
A proliferação de cursinhos preparatórios para a população trans, Brasil afora, também é uma ação social benévola que buscam sanar a falha da educação brasileira em incluir e manter pessoas trans em seus quadros. Tais cursos são iniciativas individuais e coletivas que considero potentes para a formação política e a transformação da deplorável realidade socioeconômica das pessoas trans.
Com relação à população trans, dentre as dezenas de questões, defendo que, considerando nossos atuais recursos disponíveis, precisamos nos focar em:
Permanência na educação básica
Promoção de uma educação para a diversidade, junto aos professores e demais trabalhadores da educação, que estimule o reconhecimento das demandas das pessoas trans e a sua proteção nas escolas;
Acesso e permanência qualificada na educação profissional e/ou no ensino superior
Para além da adoção do nome social em todos os processos burocráticos: na graduação, foco na permanência qualificada, com a oferta de bolsas associadas a programas de formação cultural e científica. Nas pós-graduações, foco no acesso, com reserva de vagas ou, o que pode ser mais prático, acréscimo de pontuação para graduados trans que participem dos processos seletivos dos programas; e
Acesso diversificado no mercado de trabalho
Capacitações, no maior número possível de instituições privadas, relacionadas à realidade da população trans e a necessidade de atender suas particularidades no ambiente de trabalho, respeitando sua identidade de gênero. Os sites Transempregos e Transerviços, e a consultoria SSEX BBOX, por exemplo, têm buscado atender a essa demanda.
Além disso, é preciso identificar o perfil profissional das pessoas trans para encaminhamento a cargos adequados ao seu potencial, evitando generalizar ou subestimar as capacidades dos indivíduos. Gerar fontes alternativas de emprego e renda para pessoas trans, ancoradas na auto-organização e no cooperativismo, que estimulem a autonomia financeira mínima, associada ou não a outros trabalhos em que elas(es) já se envolvam, como a prostituição.
Para além dos benefícios que serão trazidos a uma população excluída, que já é alvo de um genocídio (mais precisamente um feminicídio trans ou “transfeminicídio”, porque afeta propriamente travestis e mulheres trans), a implantação e a operacionalização de ações afirmativas para as pessoas trans, em quaisquer áreas, trarão efeitos psicossociais e políticos multiplicadores para toda a sociedade brasileira.
É preciso reconhecer, em primeiro lugar, a humanidade das pessoas trans, que é sistematicamente negada, e posteriormente, a sua cidadania.
Caso lhe interesse se aprofundar na temática das ações afirmativas, indico a leitura do meu artigo “Ações Afirmativas Abrem Portas”.
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