“O que faz de uma gorda, mulher?” A pergunta de Jéssica Balbino em sua coluna neste #8M me despertou várias questões. Vivencio a gordofobia a partir de um recorte específico, de uma mulher cis. Pra mim, é difícil – para não dizer impossível – saber e falar com exatidão como esse preconceito é vivenciado no corpo de uma pessoa trans.
Em uma entrevista aqui para a revista AzMina, Erika Hilton disparou: “os problemas são diferentes, mas o algoz é o mesmo”. Pensando nisso, e em como a gordofobia se estrutura sobre um suposto adoecimento dos corpos gordos, me dei conta de que as transcorporalidades também encontram lugar nesse mesmo território, também sofrem nas mãos de um mesmo algoz.
Por muito tempo, e talvez ainda hoje, pessoas trans, tanto quanto pessoas gordas, foram vistas exclusivamente sob uma perspectiva médica. Essa que a gente sabe que é masculina, branca, de classe alta, eurocentrada. No entanto, entendemos que entre tantas interferências, falar sobre transcorporalidades também é falar a partir de uma abordagem social e identitária. Assim como para as pessoas gordas.
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Sapatransviade, marica-camión-não binarie, transmasculine, imigrante-sudaka e gorde: Ale Mujica é médique psicanalista pela Universidade Autónoma de Bucaramanga, na Colômbia, mestre e doutore em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina. Em seus estudos, dedica-se às questões do cuidado à saúde das pessoas trans e fala sobre como a biomedicina, como poder colonizador, sugere o que seria um corpo normal para, a partir daí, impor formas de ajustar os corpos nesse lugar.
Foi a partir de um encontro com Ale que saiu o texto desta coluna. Na nossa conversa refletimos sobre a cilada colonial do corpo errado: “o transativismo nos ajuda a pensar justamente nessa desnormatização das corpas, na pluralidade delas, e de como a gente caiu nessa cilada por tanto tempo”, afirmou elu.
A cilada do corpo errado mora na ideia paternalista de um sistema que diz nos acolher. Mas que, para garantir o acesso a alguns direitos, como políticas públicas ou reconhecimento das nossas identidades, nos obriga a nos encaixar em outros padrões.
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É o caso dos estereótipos da gordofobia, por exemplo, que nos obrigam a compensações para sermos pessoas aceitas em sociedade: gorda engraçada, gorda inteligente, gorda sexy, gorda saudável, por aí vai. No caso de uma pessoa trans, Ale reflete que, quando alguém foge da cisheteronormatividade, as cobranças em relação à corponormatividade – o corpo “normal” – se intensificam.
“Tudo bem ser trans, mas não pode ser gorde, aí já é demais”. É como se você tivesse que cumprir certas regras, se ajustar, para que a sociedade, as instituições te deem um espaço mínimo, uma migalha de dignidade. A migalha colonial. É como se fosse uma moeda de troca.
No movimento antigordofóbico, as mulheres encabeçam as discussões e ações, conforme aponta estudo, publicado na revista de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba. Já intersecção entre gordofobia e transfobia praticamente só é abordada no movimento trans por quem a carrega. “Ao menos por onde transito, é uma temática que merece ser tratada com mais força”, reflete Ale.
Um exemplo disso é o fato de Ale ter enfrentado dificuldades para acessar o tratamento hormonal, garantido pelo SUS, por causa do seu peso. “Para além da patologização e da medicalização que recebemos por sermos pessoas trans, passamos por isso também por sermos pessoas gordas. E quem é magre não se dá conta.”.
A despatologização tanto das pessoas gordas, quanto das pessoas trans, deveria ser uma pauta de todes. O discurso da medicalização atende a interesses de poderosos, e cedo ou tarde vai atingir quem, agora, se encontra no lugar privilégio.
Em especial em uma sociedade onde não se pode adoecer, a culpa do adoecimento, sendo uma pessoa gorda, recai sobre a própria pessoa, sem questionamento sobre a própria gordofobia. E isso acontece também com pessoas racializadas, LGBTQIA+ e outras divergentes.
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“A gordofobia que experimento desde a infância, antes mesmo de não me reconhecer enquanto uma criança/mulher cis, marca ainda hoje quem sou”, reflete Ale. E acrescenta: “Precisamos construir espaços de acolhimento, de carinho, onde a gente possa ser/estar sem ter que justiçar o tempo todo nossas vivências, nossas existências, nossas corporalidades.
No encontro da gordofobia e transfobia, uma semelhança – não estamos pedindo muito, mas o justo: dignidade em relação às nossas existências, ao nosso viver.