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18 de agosto de 2022

O negócio da fertilidade: como pessoas saudáveis são transformadas em quase inférteis para vender tratamentos 

A consultoria de fertilidade está mais para estelionato, ao oferecer um exame como se ele pudesse apresentar uma informação que, na verdade, não oferece: a real fertilidade ou falta dela para mulheres saudáveis

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o negocio fertilidade

Se você tem mais de 30 anos e ainda não se deparou com uma propaganda ligada a sua vida reprodutiva, acredite, é só uma questão de tempo. Gravidez e filhos ficaram em segundo plano, na contemporaneidade, e transformaram-se em um lucrativo negócio, baseado no medo de uma suposta dificuldade de engravidar. Vende-se a ideia de que seria possível parar o relógio biológico e prever a reserva ovariana. Mas quanto disso corresponde à realidade, e a que custo?

O declínio da fertilidade com o avançar da idade é um fato, porém está longe de ser tão abrupto quanto as propagandas fazem parecer. O que sabemos é que enquanto uma pessoa com menos de 35 anos leva em geral seis meses para engravidar, alguém com mais de 35 pode levar até 1 ano e ter mais chance de abortos espontâneos e/ou de alterações genéticas. 

Outra forma de dizer: entre 20 e 30 anos, uma em cada quatro vai engravidar naturalmente em um ciclo menstrual; já aos 40 anos esse número cai para uma em cada 10, conforme apontam estudos. Portanto, ao invés de serem desencorajadas sobre a possibilidade de uma gravidez mais tardia, talvez as pessoas precisem de orientação para uma expectativa mais realista. 

O negócio da fertilidade usa discursos voltados para pessoas com útero a partir dos 30 anos, com uma linguagem moderna e LGBTQI friendly, apelando para ‘deusas e ciência’. As imagens do site e a página de Instagram de um desses serviços de “consultoria de fertilidade”, que tem nome de orixá, estão repletas de mulheres negras – ainda que elas sejam mais o rosto de quem vende óvulos para que outras mulheres construam suas famílias no sul global (nos países em que esse comércio é legal), do que de quem participa desse mercado de reprodução assistida. É algo caro e praticamente inacessível no SUS. 

O hormônio Anti-Mülleriano (AMH)

Mas o que vendem essas páginas que se dizem puramente informativas? Vendem o ‘direito de você controlar a sua fertilidade’ através da dosagem de um hormônio, o AMH (hormônio anti-mülleriano), e de um relatório médico com orientações relativas ao seu ‘planejamento reprodutivo’. 

Porém, o AMH está longe de ser essa ampulheta que informa a reserva ovariana, ou seja, quanto tempo te resta para conseguir gestar – e se você deve tentar engravidar antes ou depois de fazer um mestrado, por exemplo. Ainda que o relatório inclua orientações sobre hábitos de vida, como cessar tabagismo e iniciar uma atividade física, essa é uma orientação que uma visita a unidade básica de saúde do bairro poderia fornecer…

A literatura disponível respalda o uso de níveis de AMH para saber a reserva ovariana de mulheres INFÉRTEIS em uma seleção de protocolos de estimulação ovariana nessa população. No entanto, usar o AMH para o aconselhamento de fertilidade, sem que haja um diagnóstico de infertilidade, não tem amparo científico

“O problema da dosagem de AMH é que essa prática explora o conceito de prevenção e os limites mal traçados entre saúde e doença. Pelo exame cria-se uma doença, ou uma categoria de risco para doença, gerando medo e ansiedade. Pelo medo, torna-se simples a oferta e comercialização de soluções fáceis em forma de produtos, no caso, o congelamento de óvulos. 

Assim, a dosagem de AMH baixa tem determinado a indicação do congelamento de óvulos, proposta como solução definitiva para o problema da infertilidade em potencial. Nesse sentido, o procedimento é vendido como um produto que promove a garantia de potencial fértil, o que nos traz diversos problemas”, explica a colega Nathalia Cardoso, médica de família e comunidade que atua no Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.

Congelamento de óvulos 

Então, o grande objetivo final dessa “consultoria de fertilidade” é fisgar pessoas para a mais nova oferta do mercado de saúde (ou doença?): o congelamento de óvulos. Mas isso precisaria ser feito antes dos 35 anos, quando muitas mulheres nem estão pensando ainda em filhos. No entanto, as informações disponíveis sobre o procedimento (que custa em torno de 10 mil reais e mais mil anuais para a manutenção) estão longe de comunicar adequadamente sobre os riscos e benefícios. 

Em primeiro lugar, para extração dos óvulos é necessário usar hormônios para  induzir a ovulação, procedimento que pode levar a uma síndrome de hiperestimulação ovariana com vazamento de líquido no abdômen, podendo causar inchaço e náuseas, e, mais gravemente, coágulos e falta de ar. Igualmente econômica, é a informação sobre a chance de um óvulo transformar-se em um bebê no futuro: 2-12% por óvulo congelado. Considerando-se que esse óvulo congelado futuramente seria utilizado numa FIV, na qual a taxa de sucesso com óvulo próprio é de 23% e com óvulo de doadora é de 39%

Leia mais: Congelamento de óvulos: nova revolução feminina?

“Apresentar o congelamento de óvulos como uma garantia de saúde fértil é colocar mulheres sob risco de medicalização e doença causada por um tratamento (iatrogenia), sendo uma atitude que viola o princípio básico de ética médica, que é o da não maleficência. Além disso, reflete muito sobre o modo como as mulheres têm sido historicamente tratadas diante das questões que dizem respeito aos seus corpos: com distanciamento, sem diálogo necessário, sem orientação baseada em evidência, com promessas irreais diante de tratamentos e sem poder de escolha com real reflexão e horizontalidade”, diz a médica da família Nathalia Cardoso.

Deveria ser de conhecimento de todos, se fôssemos letrados para a ciência e estatística, que todo e qualquer exame depende também de quão bem ele foi indicado. Todo exame nada mais é do que uma previsão. Essa exatidão matemática, que as pessoas imaginam ter quando estão com um exame nas mãos, não poderia estar mais distante da realidade. E talvez sobre isso eu possa escrever em um momento oportuno para não me desviar completamente do tema aqui.

Não há forma de garantir uma informação segura sobre nosso status de fertilidade? Infelizmente, não. Só tentando engravidar mesmo. E se você tentar e não conseguir, deve começar a investigar (depois de um ano se tem menos de 35 anos e depois de seis meses se tem mais de 35). Mas há ainda muita coisa que nós poderíamos fazer, coletiva e individualmente, se estivéssemos verdadeiramente preocupados em garantir a reprodução de nossa espécie (que sinceramente, nem mereceria tanto…). Cito algumas possibilidades:

Para os profissionais de saúde: 

  • Investigar adequadamente cólicas menstruais graves que preencham critério clínico para endometriose ao invés de suprimir menstruação com métodos hormonais diante de toda e qualquer queixa;
  • Corrigir alterações metabólicas na Síndrome dos Ovários Policísticos ao invés de jogar o problema para debaixo do tapete com uso de pílula anticoncepcional, que sabidamente trata os sintomas e não sua causa.
  • Investigar e tratar causas relacionadas à baixa contagem e qualidade de espermatozoides, orientando sobre a importância do envolvimento da parceria e sua saúde no processo de gravidez
  • Contribuir para a desalienação corporal, aprendendo e ensinando ferramentas de conhecimento de si, como a percepção de fertilidade/menstrual (70% das mulheres realizando FIV não sabiam como conhecer sua janela de fertilidade, de acordo com pesquisas) e também debatendo ferramentas como inseminação caseira tecnologia recentemente reconhecida juridicamente para dupla-maternidade 

Para a coletividade: 

  • Questionar, punir e cobrar a continuidade do envenenamento da população e meio ambiente com disruptores endócrinos como agrotóxicos, relacionados a cânceres ginecológicos e infertilidade;
  • Garantia de acesso a trabalho, lazer, atividade física e alimentação adequada; 
  • Garantia de amparo para exercício da maternidade com creches de qualidade e uma visão mais respeitosa à infância e a quem exerce a função de cuidado;
  • Reconhecimento da reprodução como mais um trabalho que deveria ser portanto remunerado;
  • Oferta de reprodução assistida no SUS para pessoas que precisam do serviço;
  • Ampliar acesso e informação sobre adoção;
Leia mais: Maternidade lésbica

Importante mencionar

O congelamento de óvulos e FIV são tecnologias importantes que devem ser comemoradas, dada a chance que oferecem para que pessoas submetidas a tratamentos para câncer possam guardar gametas, que casais homoafetivos ou inférteis possam garantir uma gestação biológica. O que tento discutir e alertar aqui, é sobre a inclusão de tecnologia de forma acrítica, sem adequada comunicação sobre riscos e benefícios. Espero que esse texto possa colocar pacientes em uma relação mais horizontal de diálogo com cuidadores e provedores dessa tecnologia.

Glossario

AMH – Hormônio Anti-Mulleriano é produzido pelas células do ovário e é responsável por regular o desenvolvimento e crescimento dos folículos (estruturas que contém o óvulo em seu interior). 

FIV –  A fertilização in vitro é um procedimento de Reprodução Assistida. A técnica tem como objetivo coletar óvulos diretamente dos ovários e fertilizá-los com sêmen (de banco de esperma ou de uma parceria) em laboratório. O processo inclui desde a fertilização até o desenvolvimento dos embriões, que são cultivados em meio de cultura e dentro de incubadora a 37ºC por 5 dias até serem transferidos ao útero materno. 

Inseminaçao intra-uterina – é uma técnica de reprodução assistida em que o sêmen é depositado diretamente na cavidade uterina durante o período fértil, aumentando assim as chances de conceber uma gravidez. 

Inseminação caseira – é uma técnica na qual a própria pessoa ou casal utiliza uma pequena sonda e insere sêmen (de doador conhecido) para o interior da cavidade uterina. No Brasil, tem sido utilizada por casais de mulheres que desejam a maternidade com jurisprudência para tal. (Confira reportagem da AzMina sobre riscos e cuidados para o procedimento

Indução da ovulação – é realizada para facilitar a produção e liberação de óvulos pelos ovários. Este processo é indicado na disfunção ovariana. Os protocolos de indução da ovulação baseiam-se em medicamentos que podem ser comprimidos, como o citrato de clomifeno, ou através do uso de hormônios injetáveis, conhecidos como gonadotrofinas. Nos casos de fertilização in vitro, a indução é chamada de estimulação ovariana, com uso de remédios para a pessoa ovular. Em seguida esses óvulos são aspirados através da vagina por meio de agulhas especiais para que sejam fecundados com o espermatozoide em laboratório. 

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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