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gabi literatura
24 de abril de 2023

Direito às horas livres não alcança nem as personagens da ficção

Literatura narra a sobrecarga de mulheres e a falta de tempo para si

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acúmulo de funções

Um dia, Valeria vai comprar cigarros para o marido. Descobre, sem esperar, que deseja um caderno. O objeto está ali, exposto, dando sopa na vitrine com a capa escura, e a mulher entende que precisa dele. A guerra acabou há pouco, as vendas são racionadas e aquele não é um dia em que se pode comprar cadernos. Mas Valeria insiste, o comerciante cede e ela leva as páginas em branco para casa. 

Caderno Proibido, da italiana Alba de Céspedes, começa assim, com o espaço que a protagonista Valeria abre para entrar em contato com a própria subjetividade. Ela quer fazer do caderno um diário, escrever sobre o que viu, o que decidiu, o que sentiu. Mas não é tão simples. A mulher cuida da casa, dos dois filhos – já adultos -, das contas, e ainda trabalha num escritório. Não tem quando, nem onde escrever.

Na casa, não há um cômodo dela, nem um móvel em que possa guardar o caderno secreto com segurança, sem achar que sua privacidade vai ser invadida a qualquer momento. O espaço de criação fica restrito aos poucos momentos em que está sozinha.

Diferentes resenhas do livro fazem referência a Um teto todo seu, de Virginia Woolf. O ensaio, que nasceu de uma série de conferências da autora em universidades, expõe a necessidade de um espaço físico silencioso e protegido para a feitura da ficção, e aponta como isso é um obstáculo para mulheres que escrevem – como Valeria.

Não é só que ela não tem direito à solitude, a personagem também se entrega pouco às brechas possíveis. Ciente da expectativa que recai sobre ela, sente culpa quando dedica um tempo a si. Não sabe como se livrar dessas amarras que vêm com o acúmulo de funções.

Encontro consigo 

Escrever entrega a ela uma possibilidade de desvio. À medida que dribla os espaços ocupados, sobretudo pelos homens na casa, vai abrindo também caminhos na geografia interna e passa a vislumbrar vias antes proibidas. Seu flerte com a subversão nasce do encontro consigo, da permissão que o diário lhe dá para sentir coisas novas. O papel permite a chatice, a preguiça, a tristeza, o cansaço. Tudo que lhe parecia vetado por tanto comprometimento agora fica acessível, ainda que sob o manto de um segredo.

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falei nesta coluna antes sobre o potencial do compartilhamento de experiências entre mulheres para questionar rótulos. Se permitir um contato com os próprios sentimentos e uma reflexão sobre eles também tem esse efeito. É outro caminho que pode levar a um incômodo em relação aos papéis que ocupamos. 

A personagem Valeria pensa sobre a maternidade e o casamento a partir de suas anotações. Sua abertura para a intimidade também permite olhar a filha de outra forma, percebendo na moça um novo jeito de estar no mundo. É um choque geracional evidente, um abismo entre as permissões que cada uma dá a si mesma. 

Para a protagonista, há desejo e medo na liberdade da filha. É inconcebível que a jovem não esteja disposta aos filhos, aos trabalhos domésticos, a um marido; que namore, saia descompromissada, queira uma carreira. “Mamãe, por que você não pode admitir que eu seja feliz à minha maneira?’ Respondi que a felicidade, ao menos como ela a imagina, não existe, sei por experiência.”

Amor ou trabalho não-pago?

O acúmulo de funções não mói só os corpos. Essa supressão do tempo livre também leva embora boas ideias, o ânimo de planejar, a intensidade dos desejos, a disponibilidade para as emoções e sabe-se lá quantos outros aspectos que nos constituem como sujeitos.

A italiana Silvia Federici escreveu que “o que chamamos de amor é trabalho não-pago”. Por trás da frase já pop, há um estudo da gênese do capitalismo a partir da perspectiva de um sujeito raramente contemplado nos livros: a mulher. A filósofa radicada nos Estados Unidos vai nos contar, em Calibã e a Bruxa, que é no século XIX, que a ideia de família moderna se firma entre a classe trabalhadora. Esse conceito está centrado no “trabalho reprodutivo, em tempo integral e não remunerado, da dona de casa”. Antes disso, nos séculos XVI e XVII, o trabalho reprodutivo das mulheres proletárias era destinado às famílias de seus empregadores ou ao próprio mercado – o que vale ainda hoje para trabalhadoras não-brancas.

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Ao reconstituir a história do trabalho não-remunerado de mulheres, Silvia Federici mostra também o processo de mecanização dos corpos, que pressupõe a aniquilação dos desejos. O corpo que vai se definindo como símbolo das relações de classe vai também sendo redesenhado nos outros âmbitos da exploração, que passam por gênero, raça, sexualidade e indicadores que, no fim das contas, autorizam a expressão da subjetividade. O corpo esgotado não tem energia para ir além de suas obrigações cotidianas. 

Valeria não trabalha num escritório por escolha. Tampouco foi uma opção se casar e ter filhos. Havia um caminho circunstancial traçado, que ela percorreu como esperado e, por não estar em um núcleo endinheirado, acumulou o trabalho comercial, o reprodutivo e o de cuidado. Inevitavelmente, o salário mensal – que veio do trabalho fora de casa – trouxe algum nível de autonomia, ainda que tudo virasse parte do orçamento familiar. De repente, no exercício da escrita, ela se pega questionando o sentido de estar sempre exausta para ter alguma independência. Mais do que isso, calcula – e se assusta – com o que significa ser independente. 

A mudança nos arranjos sociais leva muito tempo para acontecer, mas é também sentida de geração em geração. Isso não significa que a filha de Valeria não acumulará funções, não se verá imersa em um trabalho de cuidado sem remuneração, nem que não verá seu direito à subjetividade ameaçado dia sim, dia também. Mas talvez ela tem mais chances de escapar, mesmo que em partes, dessa estrutura opressiva. Ou que estará mais aberta às saídas subversivas e às brechas eventuais.

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A escritora Alba de Céspedes dizia que a escrita era seu instrumento de independência e construção de identidade de mulher livre. Entendo que Valeria, essa personagem tão intrigante, busque em seu diário uma forma de pertencer a si. Mas quantas mulheres terão um caderno, uma caneta e energia para se entregar a páginas em branco entre uma tarefa e outra?

Palavras escritas não voltam 

Em Cidadã de Segunda Classe, a escritora nigeriana Buchi Emecheta conta a história de Adah, uma mulher que quer estudar, mas depende do consentimento de homens que a rodeiam. Quando cresce, entende que sua melhor opção para acessar os estudos é se casando. Os filhos não demoram a vir e, quando menos espera, é uma mulher jovem, com três crianças, um marido indolente, e um trabalho que sustenta a casa.

A narrativa se passa em 1960. Adah ensaia mudanças, mas a situação é calamitosa e parar não parece uma opção. Cada vez que ela freia o cuidado, seus filhos enfrentam uma vulnerabilidade ainda maior, já que o pai não se dispõe a esse trabalho. A família se muda para a Inglaterra e não tem uma recepção calorosa. O país que parecia promissor para os planos de estudo se transforma em um limitador quando Adah entende que opressões estruturais também atingem as inglesas, e quando ela se descobre imigrante.

Um dia, Adah se surpreende com uma crise intensa de choro e raiva, resultado do tempo guardando tanta coisa dentro de si. A resposta para dar nome à exaustão e assentar seus sentimentos vem na literatura; começa a escrever. Mas sua libertação não passa incólume. O marido, já abusivo, tenta menosprezar sua subjetividade manifesta em palavras, sem saber que quando as palavras saem, não tem volta. Não adianta rasgar o papel, porque não estão só nele os nós que o corpo sobrecarregado desatou.

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Ouvindo o segundo episódio do podcast Futurar, sobre o cuidado e o trabalho das mulheres negras, fiquei imaginando como seria um dia em que as mulheres parassem, fizessem uma greve de todas as suas funções – algo que movimentos feministas mundo afora já propuseram. Com as pistas que a vida e a literatura dão, só vislumbrei uma sociedade sem movimento. E, mais do que isso, sem sustentação. 

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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