Já no primeiro mês da vida nômade me dei conta do porquê de tantas e tantas vezes, ao viajar para um lugar, me senti uma estranha no ninho.
Basta sentar-se na beira da praia ou num café e olhar para os lados. Quase sempre, ao fazer esse exercício, me dou conta de quão raro é encontrar mulheres negras nas rotas de viagem pelo Brasil e pelo mundo, especialmente enquanto nômades, intercambistas, mochileiras e turistas.
É que este lugar que tenho ocupado – o de uma mulher negra que passeia pelos cafés do mundo e compartilha versos e miudezas cotidianas – não é apenas geográfico. É também social, econômico, cultural e delimitado a partir de recortes de gênero e de raça.
Adaptar-se a uma cultura diferente da sua, por si só, já é uma tarefa bem árdua. Então imagine quão mais difícil é este processo quando se carrega consigo estigmas históricos e globais.
Pois bem. É exatamente por isso que ao transitar pelos verbos viajar e escrever, faço questão de não esquecer que ambos são espaços físicos e simbólicos de poder. Como assim? Talvez esteja se perguntando. Elenco abaixo o que, afinal, está em disputa aqui.
Escrever e viajar enquanto espaços de poder
Se tratando da posição de escritora, a luta é pela ruptura de narrativas repetitivas e sempre tão carregadas de preconceitos, que contam a história única de pessoas negras ocupando espaços de subserviência e sendo protagonistas da marginalidade e das estatísticas de criminalidade.
A luta é pela contação da própria história, em primeira pessoa e sem assujeitamentos, como muito bem propõe Giovana Xavier em seu livro “Você pode substituir mulheres negras como objeto de estudo por mulheres negras contando sua própria história”, publicado pela Editora Malê.
Historiadora, ativista e professora da Faculdade de Educação da UFRJ, Xavier reúne nesta obra 33 ensaios nos quais fala sobre surfe, rap, férias, rebolado, orixá, literatura e teatro. Temas que exalam leveza e bem viver, duas palavras que precisam, cada vez mais, estar presentes no discurso e no dia a dia das mulheres negras deste país.
A luta é também pela escuta. Porque quem produz literatura quer ser lida. Não queremos apenas nosso nome na capa de um livro, queremos estar na lista dos best-sellers e nas prateleiras das livrarias. Queremos ser citadas nas bibliografias de trabalhos acadêmicos e nos posts de redes sociais. E que isso aconteça não apenas em novembro – mês em que a agenda de eventos para discutir a temática racial torna-se ampla e bastante aquecida. Queremos ouvidos atentos durante todos os meses do ano.
Se tratando da posição de viajante, lutamos pelo direito à dignidade e ao lazer, sem olhares tortos. Trata-se, acima de tudo, do direito à felicidade. Poder passear com tranquilidade pelas ruas da cidade, sem ouvir insinuações de que uma mulher negra viajando, especialmente se a rota passar pela Europa, certamente é uma mulata prostituta.
“Por que os pretos não estão fazendo, em volume, de sua vida uma experiência de liberdade?”. A jovem negra, viajante e escritora Manoela Ramos traz à tona esse questionamento e discute sobre o assunto ao longo do livro “Confissões de Viajante (sem grana)”, escrito e publicado de maneira totalmente independente.
“É aquele lance: desapega quem tem para desapegar. Os pretos ainda estão muito ocupados e presos em conquistar o seu espaço na Babilônia”, afirma.
Confesso. Não tem sido fácil para mim, mulher negra, praticar o autoafeto, cuidar da saúde mental e manter o equilíbrio emocional e espiritual, especialmente num país onde ainda é tão comum ver nos noticiários casos de violações aos direitos básicos das populações negras, tais como moradia e segurança, e muitas vezes até mesmo o direito à vida.
Dados e Relatos
Como diria Chimamanda Adichie, feminista negra, escritora nigeriana e uma das mais proeminentes da atualidade, “escolher escrever é rejeitar o silêncio”, especialmente num país cujo mercado editorial é extremamente homogêneo.
De acordo com pesquisa da Universidade de Brasília (UnB), coordenada pela professora Regina Dalcastagnè e divulgada em 2018, o escritor brasileiro é um homem (72,7%) de pele branca (93,9%) e morador do eixo Rio-São Paulo (47,3% e 21,2%, respectivamente).
Do mesmo modo, negros, do gênero masculino e feminino, são minoria no turismo. Infelizmente ainda não existem muitas pesquisas que tragam dados nesse sentido, o que só reforça a importância de discutirmos mais a respeito do tema.
Ao buscar dados sobre o perfil do viajante brasileiro, me chamou à atenção que a maioria das pesquisas não coleta informações referentes à raça.
Ao analisar três estudos, realizados respectivamente pela revista Viagem e Turismo; a empresa de tecnologia Viajala; e a agência de viagens Almundo; a maioria traz informações referentes a gênero, idade, estado civil, classe social e nível de escolaridade, mas nenhum deles traz dados sobre cor.
Todavia, os constantes relatos de viajantes negros, dentre homens e mulheres, evidenciam o quanto movimentar-se pelo Brasil e pelo mundo ainda pode ser uma experiência recheada de situações de racismo.
O que inclui desde não sermos bem recepcionados por empresas e pessoas que atuam no setor de turismo e de hospedagem até a vivência mais recorrente, no caso das mulheres, de casos de assédio. Muitos relatam também que inúmeras vezes foram confundidos com prestadores de serviços, devido à dificuldade de serem vistos como consumidores em potencial.
Militância e Bem Viver
Por mais que o protagonismo desses temas – de gênero interseccionado com raça – seja das mulheres negras, todos nós bem sabemos: a resolução dessas problemáticas compete a todos.
Muitas vezes me pergunto: o quanto as pessoas do gênero masculino e as pessoas não negras estão dispostas a ouvir, debater e desconstruir? Por isso deixo aqui duas provocações:
- Ao entrar num aeroporto e olhar para os lados, quem você vê? Mais mulheres brancas ou mais mulheres negras?
- Quantas escritoras negras você já leu ao longo da sua vida?
Tomar consciência dos privilégios que temos requer empatia e comprometimento. Tornar-se um aliado desses movimentos requer ação.
Pensando de maneira prática, sugiro que neste mês da Consciência Negra leia uma autora preta e, assim, contribua para a valorização dessa nova história que está sendo contada a partir de olhares e narrativas mais humanas. História esta que vem sendo ressignificada não apenas nas páginas dos livros, mas nas rotas de viagem pelo mundo afora.