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8 de setembro de 2022

Falta de informação e de apoio profissional são os maiores entraves à amamentação no Brasil

Kely Carvalho, uma das maiores especialistas brasileiras em amamentação, fala dos desafios do mame ao desmame

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O Agosto Dourado, mês de luta pelo incentivo à amamentação promovido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), já acabou, mas os desafios para aumentar as taxas de amamentação no Brasil estão longe de ter fim. Por isso, convidei uma das maiores especialistas no tema para uma entrevista.

Natural do Espírito Santo, Kely Carvalho é fonoaudióloga neonatal e Consultora Internacional de Amamentação certificada pelo IBLCE, com mais de 15 anos de experiência. Atua na preparação de gestantes, no manejo da amamentação, na proteção da lactação na volta ao trabalho e no acompanhamento de desmame gradual. Também é uma das pioneiras no país no acompanhamento de não gestantes para o protocolo de indução da lactação, em especial, da população LGBTQIA+.

Leia nossa conversa sobre os desafios do mame ao desmame:

O fato de recebermos tanto palpite, vindo de familiares e amigos a completos estranhos, e dos mais diferentes pontos de vista (dos que receitam fórmula pra tudo aos que recomendam amamentar até que a criança não queira mais, mesmo contra a vontade da mãe)… Tudo isso revela como a amamentação é um assunto de interesse público. Por que você acha que isso acontece? Como fica a individualidade da pessoa que amamenta nesse contexto?

Kely Carvalho: Receber tanto palpite, muitas vezes, é violento com quem amamenta. A gente está num país em que, desde a década de 1970, as políticas públicas vêm trabalhando para a proteção da amamentação, ainda que seja pouco. Saímos de uma taxa 2,9% de amamentação exclusiva até o sexto mês de vida na década de 1980 para 45% agora, em 2019, de acordo com o último Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (ENANI). Mas ainda vivemos o dilema do equilíbrio entre querer e poder amamentar e querer e poder desmamar quando é a hora para cada dupla de lactante e bebê.

Eu acho que esse assunto é de interesse público e que a gente deveria falar mais sobre amamentação. As bonecas vêm com chupeta e mamadeira, por exemplo, e a gente cresce achando que esse é assim que se alimenta uma criança. 

O que mais me incomoda, na verdade, é que os profissionais de saúde não estão aptos a lidar com a amamentação e também dão palpite. Mas profissional de saúde não pode dar palpite, tem que trabalhar com embasamento e empatia. A evidência científica não vai servir para todo mundo, mas ela precisa chegar para todo mundo. Hoje, pra mim, quem é mais responsável pelo desmame no Brasil e no mundo são os profissionais de saúde.

Por outro lado, a mesma pessoa que ultrapassou todas as barreiras para amamentar, frente a uma licença parental insuficiente, escolas que não oferecem alternativas para a pessoa continuar amamentando e uma rede de apoio que é mais rede de agouro, quando ela consegue amamentar e transpor os primeiros seis meses, o primeiro ano de vida, ela entra num outro conflito que é: também não posso desmamar, tenho que esperar o desmame natural acontecer. 

Como se quem amamenta não pudesse, a partir do momento que recebe informação, tomar decisões. E não é a minha decisão, não é a decisão do outro, é a que funciona para ela e para a casa dela.

Na sua opinião, quais são os maiores desafios enfrentados por quem decide amamentar hoje no Brasil?

Kely Carvalho: Já temos estudos mostrando que quem recebe informações desde o primeiro trimestre de gestação tende a ter menos problemas com a amamentação e a procurar ajuda mais cedo. Mas essa ainda não é a realidade da maior parte das pessoas.

Outro problema é a falta de orientação profissional padronizada. Desde que o bebê nasce, na maternidade, cada hora a lactante recebe uma informação diferente. A turma da manhã fala uma coisa, a da tarde, outra coisa e a da noite, outra. Pra mim, disparado, essa é a maior queixa. E amamentação não é achismo, é ciência.

Depois, a gente tem os desafios subsequentes, como a falta de apoio profissional na puericultura (acompanhamento do desenvolvimento infantil). A própria consultoria de amamentação ainda não é regulamentada no Brasil, então, não é possível contratar esse tipo de profissional no SUS. Além disso, falta uma licença parental e uma volta ao trabalho compatíveis com o recomendado para a amamentação.

Qual o papel do companheiro, companheira ou rede próxima de apoio da pessoa lactante na amamentação?

KC: Primeiro, não atrapalhando. Se puder, evitar comentários desnecessários, não oferecer chupeta e mamadeira, perguntar primeiro o que a pessoa que está amamentando quer fazer. 

Se puder, assumir também todos os outros compromissos, porque amamentar um bebê, especialmente nas duas primeiras semanas de vida, é muito difícil. Então, se essa lactante puder não se preocupar com mais nada além da amamentação (comida, roupa, fralda, banho, marcar consultas, vacina) isso ajuda demais! Especialmente nas acordadas à noite, pegar uma água fresca, um biscoito, ficar acordado junto, porque, nesse começo, é muito solitário amamentar.

Se for oferecer ajuda, perguntar se a pessoa quer que marque uma consultoria de amamentação, se quer ir a um banco de leite, conversar com o pediatra e perguntar como ela está se sentindo, antes de dar palpite direto.

Como posso apoiar a amamentação, mesmo não fazendo parte dessa rede próxima?

KC: Amamentar é bom pra todo mundo, até pro meio ambiente, porque diminui o desmatamento gerado pela produção de fórmula. Diminui o risco de doenças, diminui internação infantil, reduz gastos pro Estado e pros convênios. Quem amamenta tem menos chances de ter muitas doenças, como câncer de colo do útero e câncer de mama. 

Então, amamentar é bom pra todo mundo. Sendo assim, todo mundo é responsável pela amamentação. Seja não propagando mentiras e mitos por aí, seja pensando em leis que protejam a amamentação ou pensando em como a rede de apoio pode apoiar de fato. 

Se você é empregador, deveria oferecer à sua ou seu funcionário que vai voltar da licença maternidade e quer continuar amamentando, um espaço onde se possa ordenhar e um lugar para armazenar o leite refrigerado.

Se você é profissional de saúde, você também é rede de apoio. Então, precisa estudar e entender que amamentação é ciência e tem muitos estudos por trás, mesmo que você não tenha aprendido sobre isso na sua graduação. É sua obrigação oferecer informação de qualidade.

Se você tem algum comércio, um café, um restaurante, deixar claro que pessoas que amamentam são bem-vindas nesses espaços também é um modo de trabalhar em prol da amamentação.

Toda história de amamentação, em algum momento, chega ao desmame – seja por vontade de quem amamenta, da criança, dos dois ou por conta de fatores externos. Esse processo nem sempre é simples. O que devemos levar em conta para ajudar as famílias nesse momento?

KC: O desmame faz parte da amamentação. É claro que nosso trabalho deve ser para promover a amamentação e evitar o desmame precoce. Mas eu acho que a gente precisa fazer três perguntas básicas antes de sair empurrando qualquer coisa goela-abaixo das pessoas: você quer amamentar? Você pode amamentar? Você sabe como amamentar? E o mesmo vale para o desmame. 

Muitas pessoas nos procuram para orientação de desmame, porque a escola, o parceiro, a família ou até o pediatra reclamaram. Então, é preciso deixar claro que o desmame diz respeito apenas às pessoas envolvidas no processo, assim como a amamentação.

É importante dizer que o desmame é um processo, não um evento em que eu acordo hoje e digo “vou desmamar”, aí passo pimenta no peito e pronto. Deveria acontecer de maneira gradual. As recomendações que temos hoje sugerem que a amamentação seja realizada até dois anos ou mais, mas em nenhum lugar está escrito que ela precisa acontecer sempre em livre demanda. Ou seja, é possível regular a demanda, especialmente a partir de um ano de idade, e seguir amamentando.

Para o desmame, é preciso entender que, quando amamentar está mais sofrido do que prazeroso, uma boa orientação profissional pode te ajudar. Claro que amamentar não é sempre um mar de rosas e tem dias difíceis, mas quando isso deixa de ser pontual e passa até a te afastar do seu filho – atendo pessoas que não querem voltar pra casa pra não ter que amamentar, por exemplo –, uma orientação pode te ajudar a não chegar nesse ponto, regulando as mamadas ou fazendo um desmame noturno, por exemplo, dependendo da idade da criança.

Tem pessoas que demoram um ano no processo de desmame, outras demoram dois meses. Vamos considerar que, por trás de um par de peitos, existe uma pessoa que também tem desejos e que, com informação de qualidade, pode decidir desmamar? “Meu corpo, minhas regras” é meu pastor e nada me faltará!

É possível fazer um “desmame gentil”?

KC: Eu não curto muito essa expressão, porque sempre pergunto: gentil com quem? Às vezes, nosso olhar se volta única e exclusivamente para as crianças – estou falando aqui do público que eu atendo, que respeita as crianças, trata elas como gente, não bate, etc. Mas, muitas vezes, a pessoa que amamenta está num nível de esgotamento que não é gentil com ela. Então, eu gosto muito da expressão “desmame gradual”, que é, gradualmente, substituir a diversão e arte que o peito dá pro bebê por linguagem, fala, abraços e outras formas de afeto.

E se a mãe, por qualquer motivo pessoal, escolhe não amamentar, como acolhê-la?

KC: Quando isso aparece no meu consultório, a gente conversa sobre o assunto. Tem pessoas que desistem de amamentar por conta de dor e desgaste. Ainda assim, a gente tem outras possibilidades, como lactar, que é oferecer leite ordenhado ao bebê. Então, a gente acolhe e entende que, quem chegou até aqui, geralmente, já recebeu informação e tentou amamentar, mas por algum motivo, chegou no seu limite. E isso é muito pessoal. 

Mas, volto a bater na tecla de que, para chegar a essa decisão, a pessoa tem que ter recebido informação. E isso não é a realidade da maior parte das pessoas.

Por que é importante incluir famílias não heterossexuais e pessoas não cisgênero no debate sobre amamentação?

KC: Simplesmente porque essas pessoas podem gestar, parir e amamentar. Elas fazem parte do grupo que pode viver essa experiência, mas nem sempre vão vive-la da mesma maneira que uma pessoa cis ou hétero. Nós, profissionais, precisamos nos educar para oferecer o melhor atendimento possível a elas. Não é moda, não é achismo e não é só militância, é porque essas pessoas vão parir e amamentar ou não vão parir, mas vão amamentar. Então, eu, enquanto profissional que trabalho em prol da amamentação, preciso atender e incluir todas as pessoas que podem amamentar. Não dá para trabalhar com amamentação sem pensar em gênero, raça e classe.

A gente precisa ampliar o conceito do que é amamentar. Se eu trabalho com todo mundo do mesmo jeito, provavelmente, eu não estou olhando para as individualidades e subjetividades, que é o que transforma o atendimento em humanizado. Humanização não é ser fofo, legal ou simpático, é entender que, aquela pessoa que está na minha frente vai precisar percorrer um caminho diferente da norma. E eu, enquanto profissional, preciso ajudá-la a percorrer o seu caminho.

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* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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