Descobri que tinha endometriose profunda em 2018, aos 26 anos. Até então, confesso que nem sabia sobre a existência dessa doença. Ao contrário de muitas mulheres, nunca sofri dores incapacitantes. Minhas cólicas eram de leves a moderadas. Durante exames de rotina, apenas uma médica desconfiou de que algo pudesse estar errado ao perceber um cisto suspeito em meu ovário. Era um endometrioma, um pequeno sinal de que a doença estava em estágio avançado. Logo desabei com a notícia de que não havia cura, não havia para onde correr, e eu provavelmente teria dificuldades para engravidar.
Até então, minha relação com a maternidade era como a de muitas mulheres – eu sabia que queria engravidar, mas esperava que isso acontecesse mais tarde. Quando recebi o diagnóstico, já estava em um relacionamento estável com meu hoje marido. O medo de ser infértil começou a me assombrar nos anos seguintes, quando nos casamos e decidimos suspender o anticoncepcional. E se eu não tivesse escolha, é o que me perguntava.
Sempre defendi que as escolhas reprodutivas são um direito da mulher e somente dela. Esse é um dos temas mais caros da minha vida, assim como a defesa do aborto. Sou escritora e acabei de lançar, inclusive, um romance de ficção sobre a vida de uma barriga de aluguel.
A minha experiência com a infertilidade, no entanto, me levou para um lugar sombrio e particular. Um lugar de incertezas, frustrações, e um grande e poderoso senso de incompetência. Eu me pronunciava e argumentava em defesa das mulheres que não querem ter filhos, pelo direito de não ter filhos. E estava vivendo a situação contrária. No limbo das mulheres que querem ter filhos, mas não conseguem.
Sofrimento invisível
Descobri que a infertilidade é uma das condições mais cruéis que uma mulher pode enfrentar, porque carrega consigo uma enorme carga de invisibilidade. Além do sentimento enorme de impotência, é um assunto pouco explorado. Pessoas que estão tentando ter filhos não costumam compartilhar suas dificuldades em público. Parte do motivo é que, quando o fazem, recebem uma montanha de conselhos que aumentam o desconforto.
É só relaxar, é só parar de ansiedade, é só esquecer que o filho vem. De repente, todo mundo conhece a fulana que tinha dificuldade de engravidar, mas conseguiu depois de tomar uma garrafada mágica.
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Poucas pessoas escutam e se solidarizam com a situação. No meu caso, decidi procurar ajuda de uma profissional de fertilidade ao completar 30 anos. Além da endometriose em estágio avançado, também fui informada de que tinha adenomiose (uma inflamação semelhante, mas dentro do útero) e ovários policísticos.
Eu poderia continuar tentando métodos alternativos e terapias naturais como vinha fazendo até então, mas a indicação para o meu caso era a famosa Fertilização in vitro (FIV), um método que, infelizmente, era caro demais para o meu bolso.
Boa reserva ovariana
Muitas mulheres jovens optam por realizar a cirurgia de endometriose para aumentar suas chances de gravidez e, na maioria dos casos, são bem-sucedidas. Além de um medo enorme de encarar o bisturi, resolvi não optar por esse caminho naquele momento pelo risco de prejudicar minha reserva ovariana.
Foi quando a médica que conduziu meu tratamento mencionou uma opção viável: como eu era bem jovem e tinha uma boa reserva, poderia me candidatar como doadora de óvulos. Isso garantiria um desconto significativo no tratamento de fertilização. Não pensei duas vezes ao aceitar e me inscrever como doadora.
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Aqui vai uma explicação sobre a FIV: no primeiro passo, a mulher toma medicamentos para estimulação ovariana. Quando os folículos alcançam o tamanho ideal, é feito um procedimento cirúrgico para “coleta” dos óvulos, que são fertilizados em laboratório com sêmen do companheiro ou doador. Os embriões viáveis (nem todos evoluem) são, então, congelados ou transferidos para o útero da mulher.
Eu tive uma excelente resposta aos medicamentos na primeira fase. Na minha coleta, foram “pescados” 28 óvulos, dentre os quais 23 eram viáveis. Fiquei com 12 e 11 foram encaminhados para doação, direcionados para o banco de óvulos da clínica. Eles podem ser usados por mulheres que não produzem óvulos suficientes ou que, por alguma razão, não alcançam a gestação com os seus próprios. Assim como existe sêmen doado, também existem óvulos doados.
Ajudar outras mulheres
Para ser autorizada como doadora, precisei passar por uma bateria de exames, inclusive um rastreamento cromossômico para descartar a chance de síndromes genéticas. Também preenchi um questionário com minhas características físicas e meu histórico acadêmico.
Não me arrependo da decisão, nunca me arrependi. Parte do motivo é que, depois de realizar a transferência dos meus próprios embriões, estou grávida. Meu “milagre científico” completou 14 semanas no momento em que escrevia este texto, crescendo saudável e com o coraçãozinho a mil. Saber que ajudei outras mulheres faz com que o momento seja ainda mais recompensador.
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Muitas pessoas me questionam se não me importo com o fato de que poderei ter “filhos biológicos” espalhados por aí, por conta dos óvulos doados. E a resposta é que essa nunca foi uma preocupação. Os filhos serão das mulheres que sonharam com eles. Sempre.
Acho importante falar publicamente sobre as alternativas que existem para mulheres. Também acredito que é preciso aumentar a luta para que os tratamentos de fertilidade sejam disponibilizados com mais frequência na rede pública. O caminho é longo, doloroso, e romper o silêncio diminui a solidão. Poder gerar uma criança também é um direito reprodutivo.
Fabiane Guimarães
Escritora e jornalista goiana, autora dos livros “Apague a luz se for chorar” e “Como se fosse um monstro”.