Um dos maiores medos de uma pessoa trans é ir ao médico, porque nunca sabemos qual tipo de transfobia nos atingirá. E a gente sabe disso antes mesmo de viver essa experiência.
Quando iniciei meu processo de hormonização, me senti totalmente perdido, sem saber por onde começar. Estávamos no auge do isolamento social por conta da pandemia de Covid-19, mas eu já tinha esperado muito pra conseguir olhar para mim e falar: sim, eu sou um homem trans.
Como eu cobria bastante a pauta trans como repórter, já sabia o básico, mas tudo mudou por conta da pandemia. Cheguei a ir, com todos os cuidados, no maior lugar de referência no atendimento de pessoas trans da cidade de São Paulo, o Centro de Referência e Treinamento (CRT) da Santa Cruz, mas logo na porta fui avisado que novos atendimentos estavam suspensos: “Volte quando a pandemia acabar”. Não fazíamos ideia de quanto tempo tudo aquilo duraria, e, sabendo como a fila pode ser grande para o atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS), decidi não esperar. Fui buscar no privado.
Temos uma cartilha nacional para o atendimento de hormonioterapia em todo o Brasil, e em muitos locais ela funciona bem. Mas faltam profissionais para atender toda a população trans, cujo verdadeiro tamanho não conhecemos – uma vez que, até hoje, não fomos incluídes na amostragem do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Sem saber quantas pessoas trans e travestis temos pelo país, como cobrar mais políticas públicas e mais profissionais dedicados ao nosso atendimento?
Rede de apoio trans
Tive o privilégio de contar com os direcionamentos de um amigo, que me passou os contatos das pessoas que o auxiliaram: endocrinologista e psiquiatra. Sim, ainda precisamos de ao menos uma consulta com o psiquiatra, embora a transgeneridade não esteja no rol de doenças da Organização Mundial de Saúde (OMS) desde 2019. Por que alguns procedimentos (principalmente cirúrgicos) ainda precisam de laudo psiquiátrico? Isso já diz muita coisa, né?
Com a indicação de uma pessoa trans, o começo foi mais fácil. Consegui o laudo que precisava, iniciei o processo de hormonização e fui atendido pelo mesmo médico por meses. Até que um dia as agendas não bateram e eu precisei improvisar. Era na mesma clínica que meu endócrino me atendia, achei que daria certo. Mas deu muito errado.
Fui do consultório médico para a delegacia registrar um boletim de ocorrência por transfobia. Além de se recusar a me atender unicamente por eu ser uma pessoa trans, a médica ficou fazendo perguntas invasivas. Questionou se eu fazia acompanhamento psicológico, se eu já tinha feito as cirurgias… enquanto o outro médico não havia perguntado nada disso, porque não iria interferir na prescrição da receita de testosterona que eu precisava.
Com essa experiência traumática, decidi que, a partir dali, eu só passaria por médicos especialistas após indicação de pelo menos uma pessoa trans. Em alguns casos emergenciais não é possível prever como vai ser o atendimento, mas também nessas situações não preciso contar que sou uma pessoa trans.
Leia mais: A desastrosa entrevista do Fantástico com Elliot Page
Somos pacientes comuns
Temos as mesmas doenças e alergias que as demais pessoas. Se tenho sintomas gripais, se estou com algum desconforto intestinal, se minha sinusite, asma ou enxaqueca atacam, só preciso apresentar meus documentos já retificados e ser tratado por quem eu sou, do começo ao fim do atendimento.
Existem consultas em que meu corpo precisa ficar exposto, como as ginecológicas ou até nos exames pedidos trimestralmente pelo meu endocrinologista. Aí, preciso lembrar que sou um homem trans e que meus pronomes devem ser respeitados. Aliás, depois de inúmeras aplicações de testosterona sendo desrespeitado em farmácias, comecei a andar com um post-it escrito bem grande: ELE/DELE, e entrego junto com a receita e o medicamento. Nunca mais ousaram errar meu pronome.
Na maioria dos atendimentos, aliás, não temos o nome respeitado. Acontece principalmente com as pessoas trans e travestis que ainda não retificaram seus documentos – como se o nome social pudesse ser ignorado. Mesmo se nos apresentamos, falamos o nosso pronome, ainda ficamos à mercê da pessoa que nos atende, porque ela vai colocar na ficha cadastral o gênero que achar melhor.
Realmente existem médicos incríveis, que não só fazem tratamentos humanizados com pessoas trans, como lutam para mudar esse sistema por dentro, seja com palestras em universidades ou até nas redes sociais. Nada disso vem da Medicina. Vem das pessoas, em sua maioria, corpos LGBTQIAPN+, que exercem a profissão como deveria ser sempre.
Leia mais: A cruzada antitrans ameaça todas nós
Por mais médicos humanizados
Hoje, pela primeira vez na vida, tenho um médico que me acompanha para além da sua especialidade, endocrinologia. Toda consulta com ele dura mais de uma hora, porque ele me pergunta de tudo: como estou fisicamente e mentalmente, como estão as coisas na vida, para só então falarmos da testosterona. É um tratamento que jamais achei que teria. Obrigado, João Victor Rodrigues!
Também tenho o acompanhamento privilegiado de uma das ginecologistas que mais tem mudado essa estrutura de dentro pra fora: Ana Thais Vargas. Ela começou a entender a importância de olhar para corpos trans quando fazia voluntariado na Casa Um, um dos locais de acolhimento mais importantes do país para pessoas LGBTQIAPN+. Tive todo cuidado também durante o pré e pós-operatório da minha mastectomia (cirurgia de retirada das mamas), com a médica cirurgiã Daniela Cornélio, referência nesse tipo de cirurgia em homens trans e pessoas não-binárias.
Mas ainda precisamos contar com a humanidade de João, Ana Thais, Daniela e outros profissionais da saúde que nos respeitam em seus consultórios. As vivências e corporeidades trans e travestis são massivamente excluídas das salas de aula durante a graduação de medicina, e seguem sem fazer parte do plano educacional nas especializações. Se não mexermos nessa estrutura, desde a formação médica, ainda vamos enfrentar muita violência nos consultórios.
Leia mais: Onde gordofobia e transfobia se encontram
Para além da nossa genitália
Garanto que não é tão difícil cuidar da nossa saúde. Só é preciso nos olhar para além de uma genitália. Entender que corpos e vivências são plurais. Transgeneridade e travestilidade são um fato e não devem ser vistas de forma patológica. Só é preciso deixar a transfobia de lado e nos humanizar. Merecemos cuidar da nossa saúde sem medo de sofrer.
A ginecologia deve incluir homens trans e pessoas não-binárias em seus atendimentos, assim como a urologia precisa estar pronta para atender mulheres trans e travestis. Somos mais do que a galera conservadora quer acreditar e temos o direito a cuidados de saúde humanizados.
É essencial investimento em profissionais dispostos, incentivo na graduação e durante os demais anos, com cursos de aperfeiçoamento e atualização para as novas identidades que vão continuar surgindo – e ainda bem. Desejo que pessoas façam medicina por amor e abram suas mentes e consultórios para oferecer tratamentos de qualidade.