
Observando a crescente publicação de livros escritos por mulheres trabalhadoras sexuais brasileiras, percebemos que a prostituta tem deixado de ser representada sob a ótica de escritores homens – como em geral ocorria no passado – e passa agora a escrever sobre si mesma. Isso contribui, entre outros aspectos, para uma maior abertura ou democratização do campo literário na contemporaneidade.
A pesquisadora e crítica literária brasileira Regina Dalcastagnè entende que a partir do momento que alguém é representado por um escritor ou escritora, esse alguém assume um “lugar de outro”, ficando de certo modo silenciado. Tal condição leva a questionar: “quem é, afinal, esse outro, que posição lhe é reservada na sociedade, e o que seu silêncio esconde?”. Portanto, considerando que a mulher prostituta ocupou (ou ainda ocupa) durante muito tempo essa posição de “o outro silenciado”, o silêncio imposto às mulheres prostitutas é agora rompido com a produção das suas próprias narrativas.
A escrita delas sobre si é mais um mecanismo de luta e desconstrução dos estigmas sociais, uma maneira de trazer a realidade individual de cada uma, retirando essas trabalhadoras da clandestinidade. Cada vez mais temos a oportunidade de conhecer a prostituta que pensa, fala e escreve sobre ela mesma, inclusive nos espaços acadêmicos.
A era digital contribuiu para o despertar dessa autorrepresentação literária, sendo a internet mais um espaço possível de ocupação e ativismo das trabalhadoras sexuais. O teórico Michel Foucault diz que a escrita age não só sobre o próprio escritor, mas também sobre aquele que o lê. É justamente nesse sentido que a literatura produzida por uma profissional do sexo age sobre toda a sociedade, contribuindo para a ressignificação do trabalho sexual e um olhar mais humanizado para a prostituta.
De personagens à autoras
Ao longo da história da literatura, observamos que a figura da prostituta serviu de inspiração para muitos escritores, que trouxeram em suas publicações romanescas diversas personagens a partir das suas próprias perspectivas. A mulher que se prostitui também foi muito representada na arte por pintores, fotógrafos e escultores. Mas essa realidade, que limita os caminhos de produção material da prostituta e ignora a sua capacidade intelectual, começa a mudar no Brasil, já na década de 1970, com o discurso político de Gabriela Leite e a criação do movimento social de prostitutas, que vêm abrindo novos espaços de visibilidade para essas mulheres.
Autora de duas obras autobiográficas, Gabriela Leite escreveu sua primeira obra “Eu Mulher da Vida” em 1990, no auge de seu ativismo em defesa dos direitos das trabalhadoras sexuais. Em 2009, publicou “Filha, Mãe, Avó e Puta”. Seus livros são carregados de discursos políticos e denúncias contra a violência na ditadura militar, além de trazer relatos de sua experiência sexual com clientes, sua relação com colegas de profissão e cafetões. São obras com narrativas emocionadas de uma prostituta que dedicou a vida ao enfrentamento dos estereótipos e estigmas sociais imputados ao trabalho sexual e às putas.
Depois de Gabriela leite, a maioria do livros publicadas por prostitutas no Brasil revelam relatos das vidas pessoais, amorosas e familiares, motivos que as levaram à prostituição e experiências sexuais com os clientes. E as profissionais do sexo mais contemporâneas não pararam na primeira publicação, deram continuidade a escrita com uma segunda obra oferecendo dicas de sexo para o público em geral e a realização de workshops para aprimorar os relacionamentos.
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A ex-prostituta Lola Benvenutti é autora dos livros “O Prazer é Todo Nosso” e “Por que os Homens me Procuram”. Bruna Surfistinha escreveu “O Doce Veneno do Escorpião” e “O que aprendi com Bruna Surfistinha”. Essas publicações são importantes para a formação do conjunto histórico do grupo, para que se possa conhecer a oportunidade que essas mulheres utilizaram para construir novos caminhos, partindo de suas próprias experiências individuais, e também para saber como era enxergada a sexualidade em suas épocas.
Putafeminista
Em 2018, surge uma nova forma de literatura, o livro Putafeminista, publicado pela escritora, ativista e trabalhadora sexual Monique Prada. Foucault afirma que “A escrita que ajuda o destinatário, arma aquele que escreve – e eventualmente terceiros que a leiam”. Podemos considerar a obra Putafeminista como revolucionária no grupo das prostitutas, já que, antes, nenhum livro pensado e escrito por uma prostituta brasileira chamou tanto a atenção da sociedade, tendo como foco o trabalho sexual como trabalho.
A literatura de Monique Prada se distingue de tudo que até então tinha sido publicado. Ela escreve sobre si como todas as prostitutas escritoras vem fazendo, mas não traz relatos de suas experiências com os clientes nas camas de motéis.
A literatura de Monique revela que a prostituta é capaz de escrever para além disso, trazendo discussões para que a sociedade possa compreender e enxergar o trabalho sexual por outra perspectiva, fora dos estigmas. Muda também o espaço ocupado pela prostituta nessa sociedade. Sobretudo, a escrita dela mostra a prostituição como pauta de um debate político que necessita de ajustes na sua estrutura social. Ela chama a atenção de outras prostitutas para a importância de se posicionar como trabalhadora ativista nas reivindicações do movimento, e conscientiza que uma puta pode e deve adotar um discurso político e feminista.
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Claramente, a obra Putafeminista surge como um instrumento de denúncias para retirar a figura da prostituta da subalternização, e colocá-la como sujeito pensante e protagonista da própria história. A prostituta que antes era falada, agora fala!
REFERÊNCIAS:
- BENVENUTTI, Lola. O prazer é todo nosso, 1 ed. Araraquara: Editora MosArte, 2014.
- BENVENUTTI, Lola. Por que os homens me procuram? São Paulo: Planeta do Brasil, 2016.
- DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado – Vinhedo, Editora Horizonte: Rio de Janeiro, Editora da Uerj, 2012.
- FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política, organização e seleção de textos Manoel Barros da Mota; tradução Elisa Monteiro, Inês Autran Dourado Barbosa. – 2ºed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. (Ditos e Escritos; v).
- MONIQUE, Prada. Putafeminista – São Paulo: Veneta, 2018 (Coleção Baderna).
- LEITE, Gabriela. Eu Mulher da Vida, Gabriela Silva Leite, Rio de Janeiro: Rosas dos Tempos, 1992.
- LEITE, Gabriela. Filha, mãe, avó e puta: A história de uma mulher que decidiu ser prostituta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
- SURFISTINHA, Bruna. O doce veneno do escorpião – O diário de uma garota de programa,1.ed. – São Paulo: Panda Books, 2005.
- SURFISTINHA, Bruna. O que aprendi com Bruna Surfistinha, 1.ed. – São Paulo: Panda Books, 2006.